Resposta ao artigo “Sionismo de esquerda: suspiros finais”

Resposta ao artigo “Sionismo de esquerda: suspiros finais”

Por Jean Goldenbaum e Bianca Bastos

Estamos vivendo tempos estranhos e trágicos no Brasil, com um governo de extrema direita, teocrático e militarizado. Algumas de suas características são as práticas de esvaziamento da ordem democrática brasileira, a tentativa de criminalização da esquerda e o uso constante e instrumentalizado do Holocausto e do nazismo em discursos desconectados da realidade. A situação dos professores universitários e de pesquisadores em geral também não é confortável. Eles são acusados de doutrinamento e de produzirem o que o governo já chamou de “balbúrdia” nas universidades.

Pois justamente no auge dessa situação, somos presenteados com um artigo da socióloga Berenice Bento, sobre o sionismo de esquerda, que supostamente é uma resenha de duas obras sobre o tema, Bento fortalece os argumentos do bolsonarismo e do atual governo do Brasil, criminalizando a esquerda e transformando em simplório um debate complexo. A pergunta que nós, judeus progressistas, fazemos é: como uma intelectual no nível de Berenice Bento se dispõe a fazer uma análise desse nível nesses tempos?

Em seu artigo “Sionismo de Esquerda”: Suspiros Finais, publicado nesta site, Bento começa sua análise sobre Israel e o sionismo, criminalizando a esquerda sionista. A partir de um suposto instrumental teórico, a ideia de washing (limpeza, lavagem), a socióloga encara todo fenômeno social que não combine com a imagem que ela tenha do sionismo como um esforço deliberado do Estado de Israel em produzir diplomacia pública.

Assim, tal qual o pink washing (uma propaganda do movimento gay) ou o vegan washing (uma suposta propaganda de alimentação vegana), haveria, para a autora, um certo “red washing”, ou seja, um suposto esforço de propaganda produzido pelo governo de Israel para dar visibilidade a movimentos sionistas. Nesse sentido, a socióloga já aponta suas metralhadoras para os seus inimigos, a esquerda sionista. Eles seriam culpados, segundo ela, por servirem a máquina de propaganda de um Estado que Bento considera ilegítimo. Assim, fazendo parceria ao discurso da extrema-direita, a socióloga criminaliza e deslegitima a esquerda, no caso a sionista.

Cabe aqui mais uma pergunta: O que há por trás dessa narrativa de criminalização dos movimentos sociais israelenses?

Ora, Berenice Bento incorpora aqui duas categorias que devem estar claras para o leitor. A primeira, a do Estado Totalitário; e a segunda, uma percepção conspirativa sobre Israel.

Na proposta de Estado Totalitário, trabalhada por Hanna Arendt, há a comparação do socialismo stalinista com o nazismo. É extremamente importante notar que além de ser virtualmente superada, essa noção é subsidiária da tese de que o “nazismo é de esquerda”. Assim, não é casual que Bento conclua que “o sionismo de esquerda é, de fato, de direita”. O malabarismo teórico é o mesmo. Somente nos assusta que, tal qual a tese do “Nazismo de Esquerda”, a autora decida não perguntar aos sionistas de esquerda o que eles são. Ela decide por eles.

Talvez isso se deva ao fato de Berenice Bento supor, como está claro no texto, que a esquerda sionista seja cúmplice de uma suposta conspiração. Aqui Bento flerta com lógicas típicas das teses relativas às “conspirações judaicas”, nas quais membros deste coletivo funcionariam a partir de orientações centrais de um governo imaginário que dominaria e controlaria todos os movimentos. Assim, além da lógica do totalitarismo, Bento se aproxima das dimensões conspirativas, típicas do antissemitismo, que aliás a autora desconsidera como fenômeno no texto.

Mas não fica por aí. Em sua sanha de desconstruir a esquerda sionista, Berenice Bento articula que não há diferença alguma entre esquerda e direita em Israel. Como “narciso que acha feio o que não é espelho”, o que não é como ela acha que é, não é de esquerda e pronto. Assim, ela utiliza restritas fontes para justificar seus pontos. Em um cenário político em que a esquerda sionista é considerada como traidora do país pelo governo de Israel, ela os considera traidores da esquerda. Assim, Bento e Benjamin Netanyahu parecem formar uma aliança tática, de excluir quem os incomoda.

E ainda há mais: assumindo a função de desmoralizar as fontes, Berenice Bento chega ao cúmulo de diagnosticar psicologicamente um dos entrevistados. Em uma dinâmica desmoralizadora e denuncista, a autora parece querer patologizar o sionismo de esquerda. Recuperando práticas racistas de uma antropologia superada, Bento assume não ter formação de psicóloga, mas, mesmo assim, promove um diagnóstico. É de fazer a ministra Damares sentir inveja…

Cabe ainda mencionar a descuidada menção das organizações judaicas Jewish Voice for PeaceJews say no e Los otros judios. Estas entidades são tidas por nós, judeus progressistas, como parceiras na luta por justiça social e direitos humanos no Oriente Médio, independentemente das diferenças que tenhamos em termos de como enxergar o complexo tema do sionismo. Perguntamo-nos se estas instituições, que prezam pela verdade histórica e pela exatidão de conceitos, estariam de acordo em ter seus nomes utilizados em meio a argumentos falhos em um texto que nada tem a colaborar com as lutas que travam.

Por fim, em um esforço desastrado em enxergar continuidades em movimentos políticos tão distintos como o Plano Dalet de 1948 e a anexação (que não houve) de 2020, Bento iguala Netanyahu a Ben Gurion, deixando de lado temporalidades e contextos sociais e políticos. Realmente, é desastroso que em tempos difíceis como esses, a socióloga Berenice Bento assuma posições tão descuidadas e tão pouco responsáveis. Lamentamos.

Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique


Bianca Bastos é licenciada e bacharela em história pela UFRJ, mestranda em História Social da Cultura na PUC-RJ e pesquisadora associada ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ) da UFRJ.

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