Por Valter Pomar
Um companheiro sugeriu que eu comentasse um texto do Nildo Ouriques, intitulado “A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados” e divulgado no seguinte endereço: https://resistentes.org/artigos/dentro-da-baleia/
Neste texto, Nildo Ouriques critica a tática — defendida por parte do PSOL, adotada pela maioria do PT e pelo PCdoB — de apoiar um setor da direita golpista para (supostamente) derrotar o outro setor, neste momento apoiado por Bolsonaro, na disputa pela Mesa e Presidência da Câmara dos Deputados.
Há muitas afirmações interessantes no texto de Nildo Ouriques, embora geralmente encobertas por um estilo literário que a mim recorda desagradavelmente o de outro autor, que por pudor prefiro não nomear. Exemplos do estilo: “quinquilharias ideológicas”, “digestão moral da pobreza”, “PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões”, “duas moléculas de lucidez serão suficientes” etc.
Entre as afirmações interessantes feitas por Ouriques, cito a de que temos no governo brasileiro uma “administração liberal da economia” que aplica um “programa de extração keynesiana”. Sendo que, “nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo”, “uma vitória de Maia e da fração financeira”. Embora a exposição tenha, na minha opinião, várias inconsistências, concordo com o núcleo da tese; aliás, desde o governo Reagan já se sabe que as políticas hoje chamadas neoliberais não são incompatíveis com medidas comumente chamadas de keynesianas.
Há também pontos que a mim parecem frágeis, como denominar de “esquerda liberal” ou de “liberalismo de esquerda” os que defendem participar do bloco de Maia, segundo Nildo para defender o “atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia”. Aceita esta afirmação, o que sobraria de “esquerda” no Brasil? Pouca coisa, como o próprio Ouriques reconhece. Mas ele parece compensar isso com a temerária afirmação de que “o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo”. Confesso que não sei bem do que ele está falando, até porque “rechaço” é uma postura ativa. E o notável, tanto em 2018 quanto em 2020, é o tamanho da abstenção, dos votos em branco e nulos. Uma atitude passiva, não ativa.
Mas o que mais me chamou a atenção no texto de Ouriques é o que ele diz acerca do 5º Encontro nacional do PT: “O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.
“Qualquer um pode ver”?
Vou transcrever a seguir um trecho da resolução do 5º Encontro nacional do PT:
“A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR E O SOCIALISMO
- A alternativa que apresentamos à Nova República e à dominação burguesa no País é democrática e popular, e está articulada com nossa luta pelo socialismo.
- Um governo e um programa democráticos e populares – os dois componentes de nossa alternativa – são o reconhecimento de que só uma aliança de classes, dos trabalhadores assalariados com as camadas médias e com o campo, tem condições de se contrapor à dominação burguesa no Brasil.
- É por isso que o PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática, que o PCB defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia nessa aliança de classes – burguesia que é uma classe que não tem nada a oferecer ao nosso povo.
- As propostas que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.
- Na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas.
- Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”.
Pergunto: com base no trecho citado, é mesmo possível a “qualquer um” constatar que o PT teria aderido “sem inibição à ordem burguesa”?
Para ler o texto integral da resolução (em cuja elaboração Dirceu e Lula não tiveram o papel que Ouriques sugere), buscar aqui:
https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf
Certamente há algum texto onde Ouriques explica melhor sua posição a respeito. Mas salvo melhor juízo, sua crítica ao que de mais avançado o PT elaborou na década de 1980 indica que – apesar de concordar que “a esquerda brasileira (…) necessita [de] um giro radical” – Nildo aponta no sentido oposto ao que me parece adequado, ou seja, ele aponta em um sentido oposto a uma estratégia democrático-popular e socialista.
Aliás, este é um traço típico de certa ultra-esquerda: jogar a criança fora, junto com a água suja do banho.
Neste sentido, embora eu tenha interpretado de maneira diferente a crítica feita a Arthur Miller em “Dentro da baleia”, acho que para ilustrar sua “tese” Nildo Ouriques fez muito bem em escolher George Orwell.