Dentro da Baleia

Por Nildo Ouriques

A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados

A defesa abstrata da democracia volta a circular entre nós. Agora, a propósito de uma eleição para a presidência da câmara dos deputados, os partidos que constituem o liberalismo de esquerda (PT, PDT, PSB e PC do B) se unem para “derrotar Bolsonaro” a partir de uma aliança com Rodrigo Maia, subitamente considerado um representante da “direita democrática”. A distinção política entre a “direita democrática” e a “direita autoritária” foi lançada por Fernando Henrique Cardoso quando seu minúsculo PSDB – com epicentro em São Paulo – decidiu a aliança estratégica com o antigo PFL (o DEM da época) para disputar e vencer as eleições presidenciais de 1994. FHC fez escola…

Não causou surpresa, portanto, quando na semana passada, José Dirceu concedeu algumas entrevistas e escreveu artigo tocando o clarinete do pragmatismo na recuperação do antigo argumento de FHC destinado agora a enfrentar e derrotar Bolsonaro numa disputa no interior do covil de ladrões que também atende pelo nome republicano de congresso nacional.

Quem seria o candidato dessa aliança até bem pouco tempo improvável? Ora, um deputado indicado por Rodrigo Maia que receberia o apoio de aproximadamente 130 deputados da esquerda liberal, talvez suficiente para vencer o candidato presidencial, Arthur Lira.

O candidato da “direita democrática” é um tal Baleia Rossi, do MDB paulista, uma escolha de Rodrigo Maia que toda a esquerda liberal decidiu acompanhar para – por tabela!! – derrotar o candidato de Bolsonaro. Maia é sabidamente homem da fração financeira hegemônica na coesão burguesa que sustentou todos os governos desde 1994 e, ademais, é também o líder das reformas que aumenta a superexploração do povo, comanda o assalto ao estado e aprofunda a dependência e o subdesenvolvimento.

No entanto, Maia expressa de maneira miserável o espírito republicano que o proto fascista despreza em seu combate contra a “velha política” que lhe assegurou a vitória nas últimas eleições presidenciais. O conflito, portanto, entre a presidência da república e o presidente da câmara, é parte constitutiva das tensões imanentes ao jogo político mas, de fato, são incapazes de motivar Rodrigo Maia a votar um dos 56 pedidos de impeachment sob sua guarda. A razão é simples: a crise atual impede a destituição pela via parlamentar do proto facista quem, por sua vez, aproveita cada lance para avançar no programa ultra liberal em favor da coesão burguesa (aliança entre o capital agrário, comercial, industrial-residual e bancário) com apoio decisivo de Maia.

Há algo que precisa ser melhor observado na crise atual. O proto fascista aplica, na prática, um programa de extração keynesiana. Guedes exibe o maior déficit fiscal da história republicana, possui a taxa Selic mais baixa quando comparado com qualquer governo do liberalismo de esquerda, mantém programas sociais que sustentavam a outrora a digestão moral da pobreza turbinada pelos governos do PT e garante o equilíbrio do balanço de pagamentos na base da economia exportadora e de empréstimos externos, além, é claro, de seguir com o super-endividamento do estado via dívida pública e transferências permanentes do Tesouro ao Banco Central. A administração liberal da economia não permite arriscar previsão otimista sobre a superação da crise cíclica mundial que se abate com mais força na periferia capitalista. No entanto, a crise aproximou os ultra liberais dos keynesianos de tal maneira que, no essencial, não existem diferenças substanciais entre os primeiros e os segundos. A divergência – sempre presente – se resume a desacordos eventuais na dosagem, mas jamais no rumo da política econômica.

A defesa abstrata da democracia – na qual Rodrigo Maia figura como representante da “direita democrática” – tem, não obstante, consequências práticas. A mais importante é a união do liberalismo de esquerda com a direita liberal na defesa do atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia. Ora, o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo e nada indica – absolutamente nada! – que goza de boa reputação nas classes subalternas. Ao contrário, mesmo na análise superficial dos resultados eleitorais de novembro, o rechaço ao sistema político segue sendo uma inclinação evidente do eleitor, além de combustível valioso para a direita em toda disputa eleitoral. Nesse contexto, a reivindicação abstrata da democracia aparece como o que de fato é para amplos setores das classes subalternas: a defesa da podridão do regime político atual, sem dúvida uma peça preciosa da campanha presidencial de 2022.

Mas o liberalismo de esquerda confina o profundo rechaço ao sistema político dominante, afirmando que a “anti-política” não teve vez nas eleições municipais e, em consequência, alimenta ilusões próprias e alheias segundo as quais os ventos mudaram, Bolsonaro saiu derrotado e o “centrão” e a “direita tradicional” venceram… Quinquilharias ideológicas sem solidez alguma, com a finalidade de ocultar o essencial no jogo pesado das classes sociais e suas frações.

A absoluta falta de compromisso com a revolução brasileira no interior do liberalismo de esquerda – portanto, ausência de um projeto estratégico – a deixa rodando no labirinto da crise administrada pelo proto fascista. No fundo, a linha defendida por Zé Dirceu se resume a reivindicação de uma “frente ampla” como se fosse possível com tal artificio reverter a lenta e inexorável deterioração da economia e do sistema político. A democracia – jamais poderemos esquecer – é uma realidade histórica a ser conquistada pela luta dos trabalhadores contra a burguesia e jamais o resultado da disputa de espaços no interior de um sistema eleitoral apodrecido que não goza de prestígio algum nas classes subalternas e tampouco guarda algum interesse à classe dominante. Aqueles que julgam a vitória do proto fascista Bolsonaro em 2018 como mero produto de uma conjuntura eleitoral – em vias de superação – divulgam uma ilusão que custará sangue e suor às classes subalternas.
Ora, um cargo na mesa diretora do parlamento, a presidência de algumas comissões e uma “vitória simbólica” sobre o proto fascista na disputa no interior do covil de ladrões justificaria, finalmente, a aliança entre o liberalismo de direita e o liberalismo de esquerda?

José Dirceu não está só na empreitada, justiça seja feita. A deputada e líder da bancada do PSOL no parlamento, Fernanda Melchiona – acompanhada de Marcelo Freixo – já anunciou que pretende se somar a corrente e eu não duvidaria que meu partido assumisse um lugar no bloco em “defesa da democracia”. Ora, a democracia não é um valor universal pois, tal como ensina a história brasileira, latino-americana e mundial, as classes dominantes não possuem qualquer compromisso com a forma liberal do regime de dominação. O liberalismo de esquerda banaliza as razões do golpe de 1964 e, com a mesma convicção, oculta o conteúdo restringido do regime eleitoral (democracia restringida) que emergiu da crise da ditadura como forma de dominação política a partir de 1985.
A questão não é, de fato, de natureza doutrinária. O senso comum funcional ao cinismo dominante afirma que devemos deixar de lado o purismo e avançar de maneira pragmática contra Bolsonaro impondo derrota após derrota, em todos os terrenos, numa luta sem quartel, até abatê-lo de maneira definitiva. Ora, o pragmatismo é também uma arte que tem lá suas exigências, nada fáceis de eludir. Nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo.

Não basta – definitivamente não basta! – aos liberais de esquerda justificar sua adesão ao liberalismo de direita prometendo um céu keynesiano nas 10 premissas de um manifesto redigido para inglês ver. Portanto, se a adesão ocorrer e, quem sabe, o tal deputado Baleia derrotar o candidato de Bolsonaro, a operação é um reforço notável à Rodrigo Maia na disputa pela hegemonia da coesão burguesa contra o proto-fascista e, em nenhuma hipótese, um passo adiante para o liberalismo de esquerda. Ao contrário, é mais do que claro que uma vitória de Maia contra Bolsonaro será um reforço precioso ao liberalismo de direita na futura disputa contra os liberais de esquerda em 2022. A polarização na próxima disputa presidencial poderá ser – como tenho advertido antes mesmo das eleições municipais – entre os ultra liberais encabeçados pelo proto fascista e a direita liberal, cujas filas não param de crescer. Enfim, por vez primeira desde 1988, se tal cenário se confirmar, podemos estar diante de uma contenda na qual o liberalismo de esquerda finalmente revelaria os limites de sua própria política justificando o voto na “direita democrática” contra a “direita autoritária”. Portanto, se o pragmatismo é isso, pode ser também um sinônimo para suicídio político!


Nas circunstâncias da crise brasileira, o pragmatismo exige uma boa dose de radicalismo político, mas esse é um tempero que o liberalismo de esquerda “orientado” pelo bom mocismo recusa como se sua adoção violasse um mandamento divino, uma regra moral. Na real, a esquerda liberal só não navega sem bússola porque esta, na prática, orientado pelo liberalismo de direita sob o bordão da… “defesa da democracia”!
Há outras razões, nem sempre exaustivamente tratadas, que comandam a adesão da esquerda liberal ao candidato da fração financeira que hegemoniza a coesão burguesa, razão pela qual devemos exibi-las claramente para entender a racionalidade do pragmatismo que se pavoneia entre nós como se fosse, de fato, um comportamento político “responsável”.
José Dirceu escreve há tempos sobre a necessidade de uma “oposição radical a Bolsonaro” e uma “auto-reforma e renovação da esquerda” (liberal). Para tal, essa oposição, cuja ponto alto seria o impecheament do proto facista, teria que levar a “suspeição de Sérgio Moro” e, mais importante, “anular as condenações a Lula”. Ora, o drama do PT não representa os dramas do liberalismo de esquerda. O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu. Portanto, os brados atuais para uma volta às bases, a defesa dos territórios, o enraizamento nas periferias, etc, são mera propaganda para sustentar o cretinismo parlamentar e a paralisia da antiga máquina sindical agora em frangalhos. A reconciliação entre o PT e as demandas populares contemporâneas são irrealizáveis nesse mundo, mesmo com Lula candidato. A propósito, não tenho dúvida a respeito: a devolução dos direitos políticos de Lula apenas elucidaria sua impotência moralista diante dos dramas reais do povo brasileiro. Nesse sentido, o caráter eleitoral dos partidos da esquerda liberal impede um ideário socialista, radical, de “renovação e auto reforma” como retoricamente defende José Dirceu. O PDT, na mesma toada, tampouco pode recuperar o ideário trabalhista tanto de Alberto Pasqualini quanto de Leonel Brizola, razão pela qual adota de maneira desinibida e com indisfarçável orgulho, as “teses” de um scholar chamado Mangabeira Unger! A “auto-reforma” e a “renovação” da esquerda liberal somente poderia ocorrer nos marcos de um diagnóstico da crise que o liberalismo de esquerda é incapaz e de uma ruptura com o sistema dominante. O keynesianismo que balbuciam não possui dentes para morder e, em consequência, não podem captar a força iracunda do povo afundado num abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. Na impossibilidade de romper com a coesão burguesa que sustentaram desde sempre com o adorno da filantropia, resta o “radicalismo” dos discursos parlamentares contra a “PEC do teto dos gastos”, manifestos contra as privatizações, ensaios de cobrança de impostos sobre os rentistas agora autorizado pelo FMI, a defesa dos direitos sociais no patamar do moralismo burguês, etc…
Mas se nem tudo é jogo de cena, há também ilusões necessárias na linha adotada pelo liberalismo de esquerda, conduzida pelo PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões. Antecipo duas delas.
A primeira, de caráter mais geral, consiste no fato de que o pragmatismo restrito a defesa abstrata da democracia é, na real, apenas mais uma jogada para manter o liberalismo de esquerda nos estritos marcos da ordem burguesa, sem avançar jamais na luta contra a ordem. Uma parte considerável do que Zé Dirceu chama de correlação de forças, de um “ciclo de derrotas” que impediria avançar mais é, na verdade, um fracasso histórico que emergiu de maneira clara na destituição de Dilma sem o recurso da luta de massas, pois a “estratégia anti-golpista do petismo” permaneceu apegada aos acordos no parlamento, as ilusões republicanas e a certeza que voltariam pela força do voto nas eleições de 2018… O PT nada mais possui de suas raízes históricas e não existe caminho para a reconciliação entre a máquina eleitoral que de fato é, e os chamados “movimentos sociais” que retoricamente reivindicam. Não por acaso, agora a “tática” é uma frente ampla cujos antecedentes podem ser vistos no encontro das Fundações dos partidos no ano passado com a criação do “observatório da democracia” e na reunião secreta de 5 horas entre Ciro e Lula em setembro desse ano cujo conteúdo o ilustre público nada sabe.
O liberalismo de esquerda encabeçada pelo PT mira 2022 acompanhado das mesmas ilusões que levaram a derrota da destituição da ex-presidente Dilma e a confirmação de seu fracasso histórico. Na real, agora pouco importa se as premissas keynesianas que adornam o voto com Maia no manifesto dos liberais de esquerda serão respeitados por Baleia – obviamente que não serão! – pois o relevante é manter a atuação política nos estritos marcos parlamentares sem convocar o povo para nenhuma batalha importante. Não fosse a pandemia, o artificio seria mais evidente.
A segunda razão, igualmente importante, refere-se a luta do liberalismo de esquerda para liquidar definitivamente o “lavajatismo”. José Dirceu defende há tempos a “suspeição de Moro” e a anulação das “condenações de Lula” como requisito de uma ordem genuinamente democrática. Ocorre que agora, há de maneira cada vez mais desinibida, uma rara e óbvia coincidência entre Bolsonaro, figuras destacadas da direita e do liberalismo de esquerda, todos abrigados no covil de ladrões, que merece maior atenção. De fato, todos querem o fim da Lava Jato que, sob ordens de Bolsonaro, está sendo gradual e seletivamente desativada. O objetivo para o liberalismo de esquerda é restituir os direitos políticos de Lula e deixa-lo livre para disputar as eleições em 2022. A redução da política à moral foi arma eficaz do liberalismo de direita contra o liberalismo de esquerda, mas no contexto de uma república apodrecida até a medula, não pode permanecer por muito tempo dando as cartas. Assim, Bolsonaro, Lula, Aécio, José Serra, Michel Temer e algumas centenas de deputados e senadores indiciados ou investigados querem e necessitam o fim da “pior das ditaduras”, aquela do judiciário e da PF. Nas atuais circunstâncias, num aparente paradoxo, Bolsonaro seguirá tanto beneficiário do reino da impunidade quanto agitador contra a corrupção. A luta contra a corrupção, que tanta autoridade deu ao liberalismo de esquerda encabeçado pelo PT na década de oitenta, foi simplesmente liquidado na esteira da incorporação do partido aos negócios de estado, tão eloquente no “caso Palocci” quanto confesso no financiamento não declarado das campanhas eleitorais. Por sua vez, Bolsonaro não poderia entregar a promessa do fim da corrupção, pois a origem primária do fenômeno se encontra na relação ultra parasitária entre o capital e o Estado, razão pela qual Moro jamais se atreveu em estender suas investigações aos segredos do Banco Central e do Ministério da Fazenda, limitando seu moralismo restaurador dos bons costumes aos partidos políticos e a merenda escolar, sem jamais olhar para os swaps cambiais, a administração da dívida pública, as medidas provisórias que concederam suculentos benefícios as multinacionais e aos capitalistas nacionais, a “fuga” de capitais, etc…
A “virada” de Bolsonaro no meio do ano – quando saiu de cena e diminuiu a emissão de declarações destinada a ocupar a cabeça do liberalismo de esquerda com quinquilharias ideológicas enquanto aprovava o essencial no covil de ladrões com as medidas de Paulo Guedes – não foi suficiente para desacredita-lo completamente como político símbolo da “luta contra a corrupção”. O proto fascista segue agitando aqui e acolá a bandeira da moralidade pública que não pode – por razões óbvias – ser disputada nesse terreno pelo liberalismo de esquerda (especialmente o PT). A queda de Sérgio Moro provou que a maioria seguia mesmo o proto fascista na eficaz redução da política à moral cujo alvo é o atual sistema de partidos políticos, ou seja, o sistema “democrático”. As derrotas históricas, nós sabemos, tardam em diluir-se na memória do povo, razão pela qual mesmo cada dia mais implicado em sucessivos “escândalos” (vide o caso do senador Flávio Bolsonaro!) o proto fascista segue exalando ares de quem permanece solitário na “luta contra a corrupção” mesmo com a ação da PGR, do Ministério da Justiça e de sua própria base parlamentar na direção de um acordo que subalternize as ações judiciais ao mundo da política. No bordão do liberalismo de esquerda, o fim da “judicialização da política e a politização da justiça”. O grito da classe média contra a corrupção – em larga medida incompatibilizada com o petismo – está sustentado tanto nos pequenos privilégios da pequena burguesia proprietária ou assalariada quanto na deterioração de sua posição em função da voracidade da crise econômica.
Maia – e o tal Baleia Rossi – seguirão vigilantes contra os supostos arroubos “populistas” de Bolsonaro, na mesma medida que atentos aos sinais “confusos” de Paulo Guedes em relação as medidas ultra liberais sempre consideradas pela fração financeira como cronicamente insuficientes. A vitória de Baleia sobre Lira seria antes de mais nada, uma vitória de Maia e da fração financeira, jamais uma derrota de Bolsonaro.
Nesse contexto, o liberalismo de esquerda atua apenas para reduzir danos no interior da política oficial, incapaz de tomar a iniciativa política. Na crise atual, a direita liberal acumula forças enquanto o liberalismo de esquerda, contabiliza derrotas políticas e ideológicas. Uma esquerda “auto renovada” não poderá jamais emergir entre nós da “luta” parlamentar, menos ainda quando se limita no parlamento a ser mera consciência crítica da política oficial sem enfrentar a coesão burguesa hegemonizada pela fração financeira.
George Orwell escreveu em 1940 um texto sobre literatura no qual denunciava a impostura intelectual e a covardia dos escritores ingleses diante do fim da literatura do liberalismo, desinibidos na arte de submergir nas entranhas de uma baleia como meio supostamente eficaz de fugir das turbulências históricas que marcaram as vésperas da guerra na Europa.
“As entranhas da baleia – escreveu Orwell – são apenas um útero o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaminhamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça. Uma tempestade que naufragaria todos os navios de guerra do mundo mal nos atingiria em forma de eco. Mesmo os movimentos da baleia provavelmente nos seriam imperceptíveis. Ela poderia nadar entre as ondas da superfície e mergulhar na escuridão dos oceanos médios (uma milha de profundidade, de acordo com Herman Melville), que jamais notaríamos a diferença. Com a exceção da morte, é o estágio sem igual, definitivo, da irresponsabilidade.”
A valorização da luta parlamentar representa hoje uma entrada na barriga da baleia e, portanto, um simulacro de luta pela democracia. O divórcio com o mundo real é completo e como manda a tradição, o artificio que fecha os olhos aos milhões de trabalhadores condenados ao desemprego permanente, ao desalento, à violência dos acidentes de trabalho, ao histórico subfinanciamento da saúde e da educação, ao domínio avassalador da cultura metropolitana sob a cultura nacional-popular, à superexploração da força do trabalho é o mesmo que justifica “a defesa da democracia”. Enquanto isso, naquele covil de ladrões, a coesão burguesa legaliza compra irregular de terras por estrangeiros, a ampliação sem limites da fronteira agrícola, permite a fuga de capitais, transforma o Tesouro em garantia de lucros aos banqueiros e todo tipo de assalto ao estado com a conivência do liberalismo de esquerda.
A esquerda brasileira – ou o que sobrou dela – necessita um giro radical noutra direção. O liberalismo de esquerda não poderá fazê-lo, não tenho dúvidas a respeito. Creio, tal como podemos ver noutros países latino-americanos, que as explosões sociais mais ou menos radicais ocorrem sem que os partidos da ordem – da direita ou da esquerda liberal – possam sair as ruas e encabeçar a luta contra a classe dominante. Não há na política situações sem saída, razão pela qual sempre haverá algo pra fazer, mesmo em condições totalmente adversas. Nessas situações, duas moléculas de lucidez serão suficientes para entender a função construtiva da recusa em atuar na miséria do jogo parlamentar; antes de isolamento social, essa recusa é, precisamente, o caminho que abrirá as portas do futuro para a esquerda na próxima semana diante de milhões de trabalhadores condenados ao abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. A derrota do proto fascista não virá da luta parlamentar; até lá, se não podemos ganhar as ruas, não devemos nos somar ao cinismo e a impostura dominante que garante vida longa a classe dominante e condena nosso povo ao vale de lágrimas como se não houvesse outro futuro possível.

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