Faz parte da tecnologia do Estado, a fabricação de soberania sobre territórios e populações, a gestão da vida e dos seus fluxos itinerantes e translocais. Faz parte dos modos, pacíficos ou violentos, de produção de governo a administração do que é concebido, disputado e negociado como “vida” em sua pluralidade de manifestações. Faz parte das tecnologias de poder, a ambição de se produzir monopólios sobre a nomeação mesma do que é a vida e, por sua vez, a governança do seu significado, sua propriedade, sua relevância e sua serventia. Faz parte do funcionamento da máquina estatal, com tudo que esta tem de embates internos e confrontos de sentido, gerir a vida em sua diversidade e magnitude demográfica, atribuindo valor, regrando sua existência, assistindo sua reprodução, controlando seu movimento, reconhecendo sua realidade.
A gestão da vida é parte indissociável do ato de governar nas sociedades com estado, de mercado e populosas. Assim, todo governo para, de fato, governar, necessita governar a vida, administrando quem vive, como vive, para que e por quem se vive, quem e quando se pode matar ou deixar morrer.
Governar é classificar para controlar. Governar é classificar o que é a vida, quem, como e porque se tem direito a ela. Não é suficiente ser um ente biológico vivo (humano e não-humano). Na vida política, é preciso ser portador de uma vida identificada, reconhecida e garantida como viva pela sociedade, seu estado e seu governo. Não basta estar vivo, sendo invisível politicamente e sujeito à indiferença coletiva.
Daí a importância do processo de luta pelo direito à vida digna, igualitária e livre, estendido a todos os sujeitos sociais para que se possa superar as suas expressões desiguais de cor, gênero, orientação sexual, classe social, renda, origem e endereçamento sociais! Daí a importância civilizatória de um processo de inclusão sociocultural e de luta constante contra a xenofobia, a aporofobia, o racismo, a LGBTfobia, a misoginia, etc.
Quanto mais excludentes, discriminatórios e desiguais são o projeto de poder e o modo de governar de um governante, mais as concepções do que é vida e de quem são os vivos se encolhem. Com a atual política do presidente, estimula-se e faz prosperar a emergência perversa de uma categoria de pessoas definidas como devedoras do oxigênio que respiram e que, por isso, merecem terapias excludentes-corretivas ou excludentes-eliminadoras, conforme sua utilidade econômica e sua subserviência produtiva.
As terapias excludentes-corretivas voltam-se para a (re)inclusão dos “desviados recuperáveis” na normalidade desejada do mundo dos que podem viver, mas sob a condição de uma vigilante tutela pelas patrulhas ideológica e de costumes animadas pelo presidente. Tem-se uma repressão restituidora que vai da imposição de cura até a invisibilidade do retorno ao armário. As terapias excludentes-eliminadoras voltam-se para quem é enquadrado como irrecuperável e um desinvestimento estatal. Tem-se uma opressão destituidora autorizada, por vezes explicitamente, que vai do retorno dos matáveis ao suplício do pelourinho até a chegada ao caixão.
A tecnologia política de matar e deixar morrer generaliza-se na saga bolsonariana como um dispositivo fundamentalmente seletivo para circunscrever os “dignos de morrer”, agregando ao seu desempenho uma dose a mais de perversão: muitos de vocês, mas não todos! Uma quantidade suficiente de imigrantes, pretos, LGBTI+, mulheres, etc., pode e deve morrer para servir como um efeito-demonstração do seu merecimento e para constituir uma memória subalterna, contábil e ameaçadora da sua utilidade provisória no mercado. Instaura-se uma competição predatória pelo direito à vida que se redefine como um cercado VIP, no qual entra quem teria feito por obedecer às regras autoritárias do jogo e por merecer a sua sujeição.
No governo Bolsonarista não se é sujeito de direito e sim sujeito ao direito que passa a operar, no cotidiano, como dividendos e premiação para os de cima e ameaça e sanção para os debaixo e ao redor já precarizados. Uma forma de se observar o encolhimento do direito à vida dos vivos é por meio da expressão do dever governamental do luto pelos mortos. Hoje, a contabilidade mórbida da pandemia totaliza cerca de 380 mil brasileiros mortos. Não se tem observado demonstrações governamentais de luto. Não viver o luto coletivo é destituir a vida de valor pela indiferença ou falta de empatia com a sua morte. Não viver o luto é não reconhecer a perda de um e, tragicamente, dos muitos do NÓS! É negar o nosso lugar comum, colocando a própria sociedade brasileira no banco dos réus com ar rarefeito. É crudelizar a vida com a banalização cruel da morte. É empurrar o outro vulnerável, o outro diferente da pervertida horda governamental, para o abismo da mobilidade socioespacial reversa, para os subterrâneos da desigualdade e para um limbo existencial, no além das fronteiras do mundo democrático e republicano das políticas públicas de inclusão, participação, cooperação e solidariedade. No Brasil pandêmico de Bolsonaro matar passou a ter mérito e morrer passou ser um merecimento!