À sombra da incontrolabilidade

À sombra da incontrolabilidade – a esquerda e a sociedade do espetáculo

Guy Debord, uma mistura eclética de marxista comunista dissidente de esquerda, com traços anarquistas, fez um pequeno livro que continua invencível, “A sociedade do espetáculo”. Partindo da análise do fetichismo e da alienação como a superestrutura da sociedade capitalista, ele mostra como o “espetáculo” transformou-se numa reificação do mundo dos homens, como os homens desprovidos de atividade vital, por que seu trabalho como atividade criativa lhes foi retirado, são serviçais “felizes” da reprodução ampliada da mais valia, amplificando o mundo das coisas, de forma a torná-lo uma “coisidade”, um espectro que funciona como mundo real, autojustificado, e que se torna o teatro no qual a humanidade trava suas “lutas”, que, a priori, como um imperativo categórico kantiano, serve, ao fim e ao cabo, para justificar a incontrolabilidade de um sistema para o qual “não há alternativa”, produz assim a crença na “eternidade do sistema” e em sua incontrabilidade. Não há alternativa de ruptura do capitalismo, “produto final acabado da civilização”.

O capitalismo não reproduz só produtos, ele se reproduz como crença, como religião, como totem que tem que ser adorado 24 horas por dia – como bem observa Benjamin. Ao vazio da morte de Deus sucedeu-se o culto do deus Mammon, a adoração permanente do mundo das coisas, que se corporificam e tomam forma e se tornam espirituais diante de indivíduos esvaziados de conteúdo. Assim, o espetáculo e a sociedade que ele vai dando forma, a sociedade do espetáculo, não são só um reflexo. O homem cria deus, mas no segundo seguinte, Deus (aí já com a maiúscula, corporificada pelos ritos que o divinizam) recria os homens. A indústria do entretenimento, a sociedade do espetáculo não são só um reflexo, se tornam um espectro recriado do mundo, o mundo reificado, no qual os homens travam suas lutas especulares. Assim como em O capital a mesa cria vida e sai dançando, diante de um operário esvaziado de sentidos e consciência, o espetáculo se torna o palco real onde se trava o embate, onde se vive. Isto se dá porque a atividade vital e a luta real estão esvaziados. Assim como o sonho é uma reminiscência da realidade e carrega uma carga vital real, mas não é o mundo real; o espetáculo se nos apresenta como a realidade fetichizada, no qual as regras da incontrolabilidade e de eternidade já estão dadas. Tudo que ele nos pede é que creiamos nele.

A partir daí os indivíduos da sociedade espetacular passam a agir como autômatos que a justificam 24 horas por dia. Quem já leu Totem e tabu de Freud sabe como o tabu funciona. O encantado (que também é um amaldiçoado) só tem poder porque o grupo acredita cegamente nele. As interdições mágicas só funcionam porque a gens acredita nelas e executa quem não as segue à risca. Assim, as interdições sexuais ou de toque contra os encantados são punidas severamente, até com a morte. Óbvio que os tabus não funcionam por magia, funcionam porque a coletividade os sancionou punindo, em geral, matando quem não os segue. Com o tempo, a crença e o medo são introjetados, assim a punição real não é mais necessária. Um correlato pós moderno deste comportamento atávico se vê no encantamento que alguns sentem nas redes sociais (que viraram o mundo real), no espetáculo tribal ou da lacração ou do cancelamento (morte ritual virtual).

Não, não se assustem, não prego o retorno para antes das redes sociais e da web, seria um contrassenso, haja vista que este artigo será divulgado nelas, já cometendo um “pecado” contra um dos tabus mais preciosos da internet, o “textão”. As pessoas não tem tempo, tempo é dinheiro, a comunicação tem que ser telegráfica, rápida, sem contemplação ou conteúdo. “Ninguém perde mais do que um minuto na internet”. Antes de querer discordar de estratégias de rede, estou discutindo estratégias de escovar no contrapelo, de achar a brecha do tempo em que possamos juntar coração e mente, em que possamos sair do ciclo do tempo contínuo esvaziado. No fundo, a comunicação telegráfica é a absoluta renúncia de combater isto. A sociedade do espetáculo tem regras absolutas indiscutíveis. Não temos tempo a perder, tempo é dinheiro.

A sociedade do espetáculo e do entretenimento é o fim da história. A realização do espírito no mundo. Não pode e nem deve ser discutida, é tautológica e circular. Não há salvação fora dela, temos apenas que saber como atuar dentro dela como cidadãos “civilizados”. Assim, a ideia da incontrolabilidade e falta de alternativa torna-se “científica” e a “cultura”, que se torna permanentemente autojustificável. O corolário deste sistema é o dogma do sucesso. O que é bom faz sucesso, o que faz sucesso é bom. Então, aprioristicamente a crítica está calada, se alguém faz a crítica a quem “venceu” na sociedade do espetáculo é porque “cientificamente” não observou suas regras, e há inclusive filosofias que justifiquem esta circularidade, algumas bem complexas (Habermas e as estratégias discursivas, “acabou a luta de classes, só podemos reformar o sistema”), Sloterdijk (a luta da “domesticação e da civilização contra a selvageria – revolução) e que inclusive fazem sucesso na esquerda, que comprou a ideia da incontrolabilidade do sistema.

Entendendo melhor o totem da sociedade do espetáculo, só aí conseguimos compreender o comportamento de rebanho, de manada da esquerda brasileira. Em lugar de escovar no contrapelo, em lugar de promover a contracultura, em lugar de pensar linguagens e conteúdos próprios e atalhos e clivagem contra a sociedade de espetáculo, a esquerda brasileira depõe as armas e mendiga de antemão migalhas no prato da indústria do entretenimento. Vou dar exemplos práticos disto. A internet não é nossa. É um ambiente hostil, onde jogamos no campo do adversário com as regras deles. Mas é um espaço de clivagem no qual o controle absoluto é IMPOSSÍVEL. O que fazemos então? Ficamos noite e dia retroalimentando e retrojustificando a mídia corporativa, a sociedade do espetáculo e do entretenimento, os “casos de sucesso”, as migalhas do sistema. Vou exemplificar, hoje mesmo recebi em vários grupos o “elogio” de Paulo Coelho a Anita, que agora quer “aprender política” para “influenciar na rede” e até fez um vídeo sobre isto (imediatamente capiturando a atenção da esquerda lacradora). Outro caso muito recente foi toda uma disputa surreal sobre uma migalha de atenção do Felipe Netto. Sério, não estou falando que estamos disputando a organicidade de alguém que seja um novo Walter Benjamin ou um novo Pierre Naville. Ou fazemos propaganda diária para ficarmos sentados, feito mosca na merda, esperando a notícia do Moro no Jornal Nacional, como a verdade só pudesse ser verificada se carimbada primeiro pelo espetáculo e pelo totem global que o corporifica.

Na verdade, abdicamos da luta antes de a fazer. E quem protesta como isto pode ser dilacerado como Orfeu. Como não há alternativa fora do espetáculo, quem crítica o sucesso só pode ser um idiota pré-histórico. O tempo linear está esvaziado e a militância reduziu-se a ser comentadora do Grande Irmão. Em lugar de usarmos a rede que nos dá a possibilidade de criarmos os enclaves, as cunhas na indústria do entretenimento, a referendamos 24 horas por dia.

E vou falar de cada um dos casos e porque os citei. A questão “Felipe Nerto”, uma falsa questão, é uma falso dilema e nem chega a ser uma questão. Não vou discutir o que ele fez ou o que ele pretende fazer, o fato é que é apenas mais do mesmo. A prisão sem imaginação do não criticar a indústria do sucesso. Se é bom faz sucesso, se faz sucesso é bom. Isto é uma mentira, mais do que uma falácia. Com a internet temos total possibilidade de produzir contracultura e uma rede própria de conteúdo orgânico que divulguemos ad nauseam, inclusive como atividade militante e com a intenção de furar as bolhas criadas pelos algoritmos. Em lugar desta estratégia de guerrilha virtual organizada, preferimos uma vez e sempre mendigar alguma atenção de algum caso de sucesso de quem sequer é orgânico a esta estratégia e, quando conseguimos, ainda nos fazemos auto-elogios dizendo que marcamos golaços. Como se não tivéssemos militância orgânica jovem de esquerda fazendo conteúdo de melhor qualidade e jogada às traças. É uma renúncia a lutar, na verdade, a renúncia de escovar no contrapelo, de fazer movimentos de contracultura na internet, como fizemos no mundo real, movimentos como os CPCs e os teatros de Arena, de que levemos à contracultura à internet em lugar de mendigar a atenção da indústria do espetáculo. Pautemos a rede e abramos enclaves nela, em lugar de corrermos atrás do próprio rabo feito cachorros vira-latas. A desculpa mais imbecil que ouvi para justificar esta estratégia (que no fundo é falta de estratégia) é “ele fala a linguagem da juventude”. Conheço centenas de jovens orgânicos nossos que falam e bem a linguagem da juventude e que fazem de tudo, desde stand up crítico e de esqueda até hip hop. A diferença entre eles e os youtuberes e influenceres de direita? Os youtubers e influencers de direita recebem anúncios e patrocínios, é uma retroalimentação, tostines vende mais porque é fresquinho e é fresquinho porque vende mais, através de anúncios pagos e impulsionamentos a rede deles cresce e cresce. Nós não colocamos um centavo nos jovens de nossas redes, e depois imploramos que os influencers da sociedade de espetáculo nos concedem duas linhas de twitter. E temos orgasmos cósmicos com isto, e atingirmos o Nirvana. Isto nem é política de rede, é reproduzir ad eternum o sistema.

Sobre nossa fixação na mídia corporativa, eu creio que é um caso freudiano lacaniano. Eu realmente gostaria de entender. Creio que é mais uma crença e uma prática do que efetivamente ela tenha 1/10 do poder que ela tinha. Se 4 eleições seguidas vitoriosas do PT mostram alguma coisa, e, ainda mais, a eleição do Bolsonaro mostram é que, a mídia corporativa está longe de ter o poder que teve na década de 90. Nenhum dos meus alunos do ensino médio lê QUALQUER JORNAL, NENHUM JORNAL. Antes de ser um defeito, é um habito da nova geração. Todos eles veem o mundo pela internet e consomem notícias pelo zap, face, etc, Em 2018 o PT acreditou que ia virar a eleição quando começasse o horário eleitoral. Bolsonaro com um horário eleitoral ridículo, quase levou a eleição no primeiro turno. Herdeiro dos robots eleitorais de Aécio Neves em 2014, Bolsonaro apostou pesado nas redes sociais e nos goleou nela. Então, realmente não consigo entender a fixação anal da esquerda em esperar submissa no sofá que a Globo dê 30 segundos dos vídeos da tal reunião do Moro. Racionalmente e hoje em dia, se os tais vídeos estivessem prontos, deveríamos estar na disputa para furar a Globo e publicarmos eles antes com a NOSSA NARRATIVA. No fundo, no fundo, repetimos o discurso de que não há alternativa e criamos uma relação de Sísifo, dialética do senhor e escravo com a Globo, na qual sempre renovamos a fé de que tem que sair nela para ser verdade. Isto deve explicar a nossa incapacidade de, por exemplo, nenhum veículo nosso, até hoje ter conseguido falar com o Adélio ou com advogados e parentes dele e ter publicado uma matéria bomba na internet sobre a faqueada; ou algum dos nossos ter ido atrás de conversar com o Queiróz ou entorno. No fundo, referendamos todo o tempo a narrativa deles, como cópia e ou plágio, não nos damos a criatividade de criar pauta própria, de pautarmos o mundo com a nossa narrativa.

Por fim, apenas citei Anita para mostrar qual é a lógica. Recebi em todas as minhas redes sociais de esquerda a pseudonotícia, “Paulo Coelho elogia Anita” e o vídeo dela (que só está alavancando e financeirizando suas redes através disto), e já vi um monte de gente correr para mendigar e ver se algum caso de sucesso da indústria do entretenimento, ícone da sociedade do espetáculo, dá duas linhas sobre nós.

Criar redes orgânicas?
Fomentar e financiar nossas pautas e pauteiros?
Criar contracultura na internet e escovar no contrapelo?
Para que?

Não há alternativa, o fim da história chegou e devemos ser submissos à sociedade do espetáculo.
Já dizia João Nogueira, bunda de malandro velho não cabe em calça lee. O rei está nu, a internet nos dá a possibilidade de pensar uma rede de contracultura com conteúdos próprios.

Paremos de mendigar a atenção da indústria do entretenimento que retroalimenta o capitalismo!
Como dizia Simón Rodríguez, preceptor de Bolívar, ou inventamos ou morremos!

É nosso desafio revolucionário criar pautas, conteúdos, canais próprios e personagens orgânicos da esquerda na internet para criar a alternativa destruídora e revolucionária ao sistema capitalista.

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