A esquerda brasileira é cristã, em tudo que isto implica de bom ou de ruim, na concepção das práticas vivenciais. Ao mesmo tempo que ela é inquisitorial, adora olhar na fechadura e tem uma curiosidade mórbida com a vida íntima das pessoas, talez por isto este esforço heroico pseudo-acadêmico de alguns de defender BBB como uma prática “sociológica”. Também não consegue passar sem uma história de arrependimento, confissão de pecados (a revivescência de confessionário católico) e epifania (Saulo no caminho de Damasco conhecendo a Cristo).
Qualquer um que confesse um arrependimento sincero já se torna, no dia seguinte, um novo herói a ser defendido e conduzido ao panteão celestial dos novos mitos da esquerda, pois “furarão as bolhas” que não conseguimos furar, por sermos supostamente ideológicos. De Anitta a Felippe Neto, de Eduardo Costa a Alexandre Frota, ai de quem fizer qualquer ponderação sobre estratégia, tática, objetivos, pauta, discurso.
O arrependimento está na psicologia política do brasileiro, vai além da política. Não à toa o neopentencostalismo está assentado na ideia do arrependimento. Ex traficante, ex prostituta, ex assassino, ex torturador, ex estuprador. Se confessou o pecado e se arrepender, nem necessita limpar os estábulos de augias, você já tem um passaporte de salvoconduto de pureza e “histórico de vida”, inclusive para patrulhar a vida das outras pessoas e decidir quem é “justo” ou “injusto’.
Tanto o patrulhamento da vida pessoal à exaustão, quanto a condenação de qualquer militante de esquerda por qualquer palavra ou escorregadela, convivem com o beneplácito a quem até ontem pregava o anticomunismo, o ultraneoliberalismo, fez campanha por Bolsonaro ou pediu fora PT, dizendo que era o partido mais corrupto do país.
São parâmetros muito difíceis de perscrutar porque tem pouco que ver com a racionalidade, tem que ver com o inconsciente do brasileiro, mesmo o mais ateu dos brasileiros é cristão, barroco e inquisidor, porque a formação da nação brasileira tem esta base. Nossa colonização foi inquisitiva, em todo brasileiro vive um pequeno Torquemada, disposto a vigiar e punir, mas também a se apaixonar pelos casos de “arrependimento eficaz”.
Seria basicamente impossível o ato de grandeza de Simone de Beauvoir, no funeral de Sartre, quando ela disse, de forma ateia e categórica, condizente com a vida que viveu e com tudo que pregou: “Sua morte nos separa e minha morte não irá nos unir”. No segundo seguinte à morte de qualquer lutador, começam no Brasil às exordiais de um céu imaginário, que acaba por igualar a todos, perseguidos e perseguidores.
A morte não muda nada. Se foi um canalha vivo, continuará um canalha morto.
Esta atitude ultracatólica está refletida na nossa lei da anistia, que anistiou a todos, torturados e torturadores. Nossa lei da anistia anistiou os torturados por terem sofrido e os torturadores por os terem torturados. Igualou a todos, numa lógica que tem tudo que ver com este ziguezague existencial nossa, dos brasileiros.
Antes de prosseguir, e antes que venham com acusações que eu sou o carimbador maluco da pureza ideológica do Pluct Plact Zum, devo deixar claro que não tenho esta pretensão. Mas sim, há parâmetros para se avaliar a posição política de cada um, inclusive as declarações tomadas uma vida inteira e autodefinição de cada aderindo a alguma ideologia ou candidatura. Então chamar fulano de ultraneoliberal ou Beltrana de fascista arrependida não é uma escolha arbitrária a meu prazer, é apenas consignar a história empírica, factual, de alguns.
Esta ideia de não cobrar o passado de ninguém, como se todos estivéssemos embarcando numa espécie de Igreja Universal do pensamento de esquerda, onde basta algum ex neoliberal confessar seus pecados e ele se tornou nossa nova liderança, é muito ridícula para mim. Até quem estuda um pouquinho de exegese cristã poderia argumentar que o arrependimento só eficaz se for confirmado pelas obras, é há de se expiar bastante pelos resultados danosos das más escolhas feitas e que nos levaram ao golpe.
É caótico e sem estratégia, colocar nos lugares chave de fala aqueles que até ontem foram artífices do golpe. Está longe de “furar a bolha”. Aliás, o discurso de furar a bolha virou uma obsessão da esquerda, que justifica qualquer desvario de adesão aos arrependidos com a pretensa necessidade de “falar aos que não nos ouvem”. Na verdade, a obsessão sempre é de atenuar o discurso e ser menos ideológico, porque assim, pretensamente, “ganharíamos o centro”.
Na prática, Bolsonaro cresceu e atropelou Alckmin sendo o mais ideológico dos candidatos. Enquanto parte da esquerda discute se muda o vermelho pelo lilás, se esconde a foice e o martelo, se omite o nome comunistas, se na propaganda do PT tem que botar a estrela pequenininha, se é melhor fazer bandeiras de candidatos brancas e ou verdes, se é melhor colocar os símbolos bem escondidos para enganar os incautos que não saberão que nós somos o que somos (sério isto, gente?);
Bolsonaro foi expressamente IDEOLÓGICO: foi abertamente racista, machista, homofóbico, anticomunista e elitista, foi abertamente contra os sem-terra, contra os sindicatos e ganhou e fidelizou sua audiência sendo um fascista declarado.
O que fez a esquerda para combate-lo? Decidiu ser light e clean para enamorar o coração cândido da classe média, coadunando sua narrativa no nível de um romance clichê de filme americano de sessão da tarde da Globo, no pior estilo pastelão limpinho, cheiroso e bem comportado.
No fundo, esta batalha para ganhar os arrependidos e torná-los nossos porta-vozes, é mais do mesmo de uma estética que fracassou na eleição. Haddad estava longe de ser um radical, talvez isto tenha sido o grande problema.
Ser radical é tomar as coisas pelas raiz.
A esquerda brasileira se tornou confusa e amorfa. Qualquer campanha para 2022 tem que dizer claramente que vamos DESFAZER A REFORMA DA PREVIDÊNCIA, DESFAZER A REFORMA TRABALHISTA, DEVOLVER A INTEGRALIDADE DAS PENSÕES À TODAS AS MULHERES, e RETOMAR TODOS OS DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS RETIRADOS POR TEMER E BOLSONARO.
Isto é muito ideológico, isto é bem pouco terceira via. Mas você não ia falar de arrependidos, Ponciano? Sim, estou falando deles, os arrependidos não são a doença, são o sintoma de uma esquerda medrosa, pouco ideológica, e que acha que achar porta-vozes palatáveis vai lhe devolver o protagonismo que perdeu. Como se fosse só uma questão de forma, e não de conteúdo.
O que nos afasta do povo não são nossos símbolos, nossas bandeiras vermelhas, ou usar os nomes de socialistas ou comunistas. O que nos afasta de fazer uma política que tenha a coragem de dizer taxativamente que VAMOS DESFAZER TODAS AS DEFORMAS E QUEREMOS QUE O MERCADO SE FODA!
Nossa falta de coragem de chamar as coisas pelos nomes, não dá clareza à população se à vida será resolvida ou não nos nossos governos.
Coloque no programa do próximo governo que VAMOS DEVOLVER A INTEGRALIDADE E A VITALICIEDADE DE PENSÃO A TODAS AS MULHERES, e vocês verão se dialogaremos ou não, com todas as mulheres da classe baixa, que vivem um terror de perder seus companheiros e não terem renda para sustentar seus filhos, e também com várias da classe média.
O problema é que tememos o deus Mamom, o deus Mercado, e nos furtamos de dizer isto com todas as letras, porque compramos a estética da direita do “rombo da previdência”, e não assumimos isto com todas as letras.
Aí achamos que o Felippe Neto vai fazer milagres e transformar todos os seus seguidores em militantes socialistas. É um pensamento tosco, mas que parece renovador e furador de bolha.
Como não sou religioso, e sou dialético e materialista, até acredito que as pessoas possam dar saltos qualitativas e melhorar mesmo, mas como também sou materialista, preciso de provas fáticas da coisa em si. Não basta dizer que se arrependeu de votar em Bolsonaro, isto é uma decisão mercadológica bem fácil: você prefere ficar com 70% do mercado ou com 30%?
A esquerda transformar as decisões mercadológicas de gente que sobrevive de mídia, e que faz pesquisa de mercado para dar bom dia, é sequer ter compulsado uma página de Adorno ou Gui Debord, aliás, outro grande problema da esquerda brasileira, a pouca leitura de literatura ideológica formativa, que a faz abraçar qualquer velharia como novidade, o museu de grandes novidades de Cazuza.
Não, não acredito no arrependimento de 90% desta gente, a maioria está apenas adequando seu discurso para não perder seguidores, ouvintes, fãs, manter seu lucro. A história futura dirá de que lado eles realmente estão, mas não, não são eles que nos devem pautar, nós é que temos que dar a pauta de forma clara e dialogar com as necessidades da população.
Não foram os youtubers ou influencers que conseguiram jogar as massas nas ruas de Santiago e Bogotá. Foi a clareza da pauta, desfazer as reformar, taxar as grandes fortunas, reforma progressistas da previdência aumentando direitos, isto sem ficar esmolando migalhas de atenção dos “fura-bolhas”.
Ou temos a coragem de ousar e dizer claramente que vamos DESFAZER TODAS AS DEFORMAS DE TEMER E BOLSONARO, dizendo claramente o que significa isto, falando para as mulheres da favela que vamos devolver a integralidade e vitaliciedade das pensões por morte, por exemplo, ou não vamos ganhar corações e mentes de ninguém.
Não estamos de padecendo de excesso de radicalidade e protagonismo, pelo contrário, padecemos da timidez e confusão no nosso discurso. Quem teme os lobos, não vai a floresta, não é rebaixando nossas pautas para serem “entendidas” que vamos furar a bolha. Mas, pelo contrário, recuperar a coragem de dizer claramente quem somos e o que defendemos.
Mais que nunca é hora de lembrar como Marx denunciava aqueles que queriam esconder sua ideologia e suas propostas, ”’Os comunistas não se rebaixam a ocultar suas opiniões e os seus propósitos. Declaram abertamente que os seus objetivos só poderão ser alcançados pela derrubada violenta de toda ordem social existente. Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista. Nela, os proletários nada tem a perder a não ser suas prisões, tem um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”’.
Devemos retomar a radicalidade de nossa proposta, para além de arrependidos e arrependimentos.
Uma resposta
Prezado Ponciano,
Excelente artigo. Sinto-me contemplada em sua argumentação. De fato, nossa esquerda está muito aquém da necessaria radicalidade, no discurso e na prática, para que se apresente como alternativa.
A classe que vive do trabalho morre todos os dias nas favelas, nos ônibus, nos locais de trabalho. Os sindicatos que ousam fazer paralisações e greves são entregues a própria sorte. Tudo em nome de um jogo parlamentar para uma “transição segura” (aprenderam com os militares) rumo às eleições.
Obrigada pelo espaço de diálogo.