PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO: AGIR ENQUANTO É TEMPO!

Tive a honra de assinar em 2005 a resolução da Agência Nacional de Águas que outorgou ao governo federal o direito de uso das águas para a implantação do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional – PISF, mais conhecido como Projeto de Transposição do Rio São Francisco.

Até meados de 2016 acompanhei de perto a evolução desse projeto e, conforme apurei recentemente, persistem lacunas na sua implementação, as quais, se não enfrentadas e resolvidas no atual mandato do Presidente Lula, desde o início, poderão significar um prejuízo inestimável ao projeto e, consequentemente, ao legado do próprio Presidente, eis que o PISF sempre foi uma das meninas dos seus olhos.

A primeira lacuna diz respeito ao Sistema de Gestão do PISF, criado pelo Decreto 5449/2006, em cumprimento a uma condicionante da outorga ao projeto, e que tinha a finalidade de garantir a sua sustentabilidade, seja do ponto de vista operacional, seja do ponto de vista hídrico, seja do ponto de vista da promoção do desenvolvimento regional. Referido Sistema contou inicialmente no seu organograma com um Conselho Gestor, composto por representações do governo federal, representações dos governos estaduais dos estados beneficiados (PE, CE, PB e RN), representações dos comitês de bacia estaduais das bacias receptoras nesses estados e pela representação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, com a responsabilidade precípua de deliberar sobre o Plano de Gestão Anual do PISF e supervisioná-lo, no qual, entre outras questões, deve constar a repartição das vazões, as obrigações mútuas da União e dos estados beneficiados, o modelo de operação, o modelo tarifário, etc. No âmbito desse Sistema, está reservado à ANA o papel de órgão regulador independente, fixando as tarifas, definindo as condicionantes operacionais de adução de água tendo em vista o seu uso sustentável. Nesse decreto, é bom que se diga, não foi definida a Operadora Federal do PISF, como era de conveniência que o fosse.

Diferentemente da realização das obras do PISF, que teve um percurso cheio de tropeços, mas virou realidade graças à pertinácia dos governos Lula e Dilma, o Sistema de Gestão do PISF jamais prosperou e, salvo melhor juízo, permanece na estaca zero ou quase isso. O Conselho Gestor enquanto existiu (pois foi extinto pelo Governo Bolsonaro!) se reuniu pouquíssimas vezes e não decidiu ou encaminhou nada de relevante. 

Apenas em 2014, depois de ter sido descartada pelo Governo Dilma a criação da empresa pública Águas do Nordeste Setentrional – AGNES como Operadora Federal do PISF, e um interregno de três anos, foi assinado o decreto presidencial definindo a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – CODEVASF para cumprir essa missão, eis que nesse referido ano se impôs a necessidade urgente de coordenar a realização de testes operacionais e receber alguns trechos de obra concluídos. A CODEVASF, como se sabe, já era na ocasião uma empresa decadente institucional e tecnicamente. Ao atribuir a ela o papel de Operadora Federal do PISF, por não dispor à época de outra opção, o governo federal, todavia, negligenciou em não lhe oferecer as condições mínimas, em termos de pessoal técnico e recursos orçamentários, para o cumprimento de sua missão. Essa precariedade, segundo consta, permanece até hoje. É sabido que o Governo Bolsonaro cogitou de privatizar a atividade operativa do PISF, mas não reúno elementos para afirmar em que estágio essa cogitação se encontra e também não me sinto confortável sobre a pertinência dessa solução. 

Os governo federal e os estados beneficiados, como condicionante da ANA, assinaram em 2005 um Termo de Compromisso, no qual constou basicamente: a) o compromisso de o governo federal em realizar às suas expensas as obras do PISF para viabilizar a adução da água da transposição até os pontos de entrega nos estados; b) o compromisso dos estados beneficiados em realizar as obras complementares nos seus territórios e; em especial, c) ressarcir a União dos custos de operação e manutenção da infraestrutura implantada, mediante pagamento de tarifas. Pois bem, o compromisso federal está praticamente cumprido e o projeto já entrou em operação em sua quase totalidade e os estados, entretanto, não cumprem a sua contrapartida financeira, sobrecarregando a União. 

A reticência dos estados em dar sua contrapartida pode ser explicada pela desconfiança relativa à precariedade do Sistema de Gestão, cuja responsabilidade também lhes cabe; por perceberem que os recursos arrecadados pelo pagamento das tarifas serão destinados à Conta Única da União ao invés de serem aplicados na sustentabilidade do projeto e, obviamente, pela cínica certeza de que o Governo Federal, para evitar desgastes políticos, não interromperá a entrega da água nos momentos críticos.

O PISF é, por todos esses aspectos, um projeto complexo e estima-se que já consumiu mais de 12 bilhões de reais em obras até o momento da parte do governo federal, já que há ainda obras complementares a serem implementadas. No aspecto estritamente físico, o projeto inclui 477 quilômetros de canais, túneis, barragens, comportas, estações elevatórias, sistema elétrico e de outros dispositivos acessórios, tudo a exigir excelência nos modelos de operação e manutenção (preditiva e preventiva), inclusive atenção para o aspecto de segurança dados os riscos de atos predatórios. Uma pane no sistema de bombeamento ou avarias graves nas estruturas de concreto, em razão da demora na sua recuperação, pode acarretar prejuízos inestimáveis à operação, com repercussões políticas negativas, sobretudo se tais ocorrências ocorrerem justamente em períodos críticos representados por uma seca severa na região beneficiada.

A sustentabilidade do PISF não se restringe obviamente a esses aspectos associados à operação e manutenção das estruturas físicas ou mesmo à falta de comparecimento financeiro dos estados beneficiados. O projeto também foi concebido e licenciado para oferecer, de um lado, a sinergia hídrica na perspectiva do uso racional das águas, e de outro lado, o alcance dos usos múltiplos da água, o saneamento ambiental e a recuperação e a conservação do solo na região beneficiada, na perspectiva de beneficiar o desenvolvimento regional-territorial sustentável. Isso tudo sem falar da importante consideração sobre a Bacia do Rio São Francisco, responsável pela oferta da água para o projeto, que carece de uma atenção específica nos aspectos da sustentabilidade hídrica e ambiental, o que nos obriga a evocar o protagonismo fundamental do Comitê dessa Bacia, também hoje enfraquecido pela crise que se abateu sobre todo o Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos por irresponsabilidade e incompetência do governo que se foi. 

No caso da sinergia hídrica em particular, cabe esclarecer que o seu alcance significa repartir as vazões aos estados na pontualidade requerida e nos volumes adequados, considerando as características e condições dos corpos receptores (açudes) e a sua vulnerabilidade aos efeitos do fenômeno da evaporação da água, característico do semiárido, de modo a se evitar desperdício de água e custos desnecessários. A Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos – FUNCEME, em parceria com a ANA, desenvolveu um modelo operativo capaz de responder a essa necessidade, contudo, ao que consta, está inoperante.

Em suma, um Sistema de Gestão inconcluso e inefetivo, a inadimplência dos estados no pagamento das tarifas, uma operadora federal fragilizada e incapaz de dar conta cabalmente do seu papel, a inexistência de modelos robustos de operação e manutenção, a dificuldade da ANA, no presente momento, de cumprir com efetividade o seu papel regulatório e fiscalizador, tudo isso concorre para ameaçar a sustentabilidade do PISF e transformá-lo num enorme elefante-branco. Impõe-se, com urgência urgentíssima, um vigoroso freio de arrumação.

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