Peter Pan da ultra-esquerda brasileira

Não sou nenhum especialista em monitoramento ou medição de redes sociais, mas algo foi notório e me assustou no dia de hoje, 5 de março de 2024, a ultra-esquerda e a ultradireita movendo a nuvem da web na mesma direção, em oposição a um projeto do governo Lula.
Apenas uma coisa une os ultras, o recalque e o ressentimento com o sucesso eleitoral do PT. A diferença é que a ultradireita tem um projeto eleitoral palpável, protofascista e de destruição do país, já a ultra-esquerda é um ajuntamento caótico de frases pseudorrevolucionárias, sem nenhum projeto de longo prazo eleitoral ou revolucionário.

Já faz um tempo e eu apelidei a ultra-esquerda brasileira com dois epitetos: Um, o de socialismo mágico, que não tem projeto, voto ou estratégia; o outro de esquerda Peter Pan, que tem síndrome de viver eternamente numa infância de DCE da UFF e que não deseja crescer ou ter projeto para o Brasil. E isto não foi agora, comecei a usar os termos, ainda quando tinha gente do nosso lado que achava que devíamos disputar aquelas noitadas de Valpúrgis de julho, no qual, em um espetáculo grosseiro, Sininho (é bem o símbolo da síndrome de Peter Pan desta ultraesquerda), tirava o Batman para dançar (isto aconteceu de fato), ao som de uma paródia de uma música da Globo. O Batman, depois todo souberam (símbolo de um bilionário que tem ódio de pobre) era bolsonarista e fascista. Esta orgia sadomasoquista entre a extrema direita e a extrema esquerda, nas manadas de julho, foi o ovo da serpente, pariram o impeachment de Dilma, pariram Temer e Bolsonaro.

E o que fez a ultraesquerda Peter Pan durante este período? Tirou longas férias e hibernou durante 7 anos. O Andes, por exemplo, que se gabava de ter feito 120 dias de greve em um único ano durante a “destruição da carreira do ensino superior pelo PT”, fez ZERO dia, zero, eu disse, zero dia de greve durante os 7 anos de congelamento salarial e de retirada de direitos e de destruição das universidades pelos governos Temer e Bolsonaro. Entre o discurso pseudo-radical do Andes e a realidade estava um governo do PT que fez 28 campi universitários, triplicou o salário dos docentes, dobrou o número de alunos no ensino superior e formou mais mestres e doutores que nos 500 anos anteriores da história do Brasil.

Eu era dirigente sindical, estava na luta, e fiz um prognóstico fácil. Disse que todos os valentes leões antipetistas seriam gatinhos angorá de madame assim que o PT saísse do poder. Gente medrosa, que só luta com garantias. Que sabia que no governo do PT não tinha exoneração, corte de salários ou perseguição política, mas que não arriscaria nada, sequer a perda de uma função comissionada de 200 reais no governo Bolsonaro. Dito e feito. Foram 7 anos de ostracismo, de uma pseudovanguarda branca, da zona sul, que nunca comeu um prato de arroz com feijão, sem mistura, na vida e fica perdido quando tem que pegar os ramais dos trens de Gramacho ou Japeri.

Mas é óbvio que esta gente voltaria ainda mais sectária logo assim que o governo de Luís Inácio Lula da Silva assumisse o poder.

Bem, me dirão, quer dizer que o Governo Lula não deva ser criticado? É óbvio que deve, é obvio que temos que lutar, é óbvio que temos que disputá-lo, o tentar empurrar minimamente para a esquerda, mas não é isto que esta gente faz.

Esta gente tem um discurso permanente de “governo cooptado e vendido, de conciliação de classe neoliberal e que tem que ser combatido igual a qualquer outro”. Par a ultraesquerda há pouca diferença entre Lula e Milei. Esta mesma gente que não tinha coragem de botar a cara na rua nos governos Temer e Bolsonaro, ou esqueceram das longas férias de 7 anos dos Black Bostas? É gente que simplesmente libera verborragia o tempo inteiro exigindo o programa máximo e nunca faz análise de conjuntura.
Qual é a conjuntura que enfrentamos? Qual as tarefas da classe e dos partidos de vanguarda? Os desafios táticos e os estratégicos, as ameaças, a correlação de forças?

Temos um governo de coalizão eleito em piores condições que em 2002, 2006, 2010 e 2014. Com o pior Congresso da história. A esquerda tem um terço da Câmara (e estou somando PDT e outras coisitas para dar um terço) e um quinto do Senado. As forças armadas e as forças militares e paramilitares não são nossas, a muito custo evitemos que elas nos dessem um golpe. Temos um STF apenas não majoritariamente golpista e não temos perspectiva de fazer maioria congressual no voto tão cedo.
O que faz a ultraesquerda, a cada medida do governo Lula, repete um discurso pronto, reificado, feito disco arranhado (tem que traduzir para esta garotada que nem sabe o que é um disco) de que Lula é neoliberal e Lula, Temer, Milei e Bolsonaro é tudo farinha do mesmo saco.

Este foi o caso agora da regulamentação do trabalho na plataforma Uber. De uma hora para a outra, ficou difícil discernir quem era fascista e quem era ultraesquerda no twitter, num festim diabólico, numa orgia sadomasoquista, decidiram os 2 lados declarar uma guerra ao governo Lula. De um lado, os fascistas assustados porque os senhores de escravos poderiam sair do Brasil, do outro lado a ultraesquerda exigindo que o governo, numa canetada, transformasse os motoristas de Uber no novo proletariado de São Petersburgo, prontinho para fazer a revolução!

Ao terraplanismo dos fascistas se seguiu o terraplanismo da ultraesquerda, e piorado, porque teve gente que assinou tolices na internet colocando por baixo seus títulos de mestres, doutores, pós doutores (se pesquisar, a maioria conseguiu os títulos a partir das bolsas financiadas nos anos do PT). A prova cabal de que Lula é o mesmo que Milei é que Lula teria assinado um projeto encomendado pela Uber para prejudicar os trabalhadores. Que Lula está do lado do Capital, que Lula é um traidor, etc, etc, etc, etc, etc, etc, um milhão de vezes.

Esta maçã é amarga, mas não há o que fazer, depois de mordê-la, tenho que devorá-la por inteiro. Primeiro, é realmente muito difícil, ao fim e a cabo, além da propaganda e da lacração, entender o que quer a ultraesquerda ao bater no projeto. Alguns dizem que seria transformar os motoristas de aplicativos em CLTistas, contra a vontade dos próprios motoristas. Em que pese que a estrutura e as condições de trabalho são sui generis, e estão muito longe de ser um trabalho organizado numa rotina produtiva, os ultraesquerdistas parecem quererem moldar os motoristas como uma espécie de nova classe operária.

Queridos, isto vai só contra a realidade e não é nenhuma defesa da precarização de minha parte. A precarização do mundo do trabalho não vai ser estancada por nenhuma lei! É óbvio, que, quando estamos no governo, faremos o possível para estender direito a todos os trabalhadores. O que provoca a precarização do trabalho é a modificação na estrutura de produção do próprio capitalismo. A mudança da estrutura produtiva do modelo fordista para o modelo toyotista é irreversível. Isto tem repercussão absoluta na organização do trabalho, na composição orgânica do Capital durante a produção, na taxa decadencial do lucro, na necessidade de aceleração da produção e na expulsão de enormes contingentes de mão de obra de reserva do círculo da produção propriamente dito, para círculos periféricos.
O que se convencionou chamar de “setor de serviços” hoje é um conglomerado de serviços que vai desde as antigas profissões liberais, passando por setores marginais e inclusive ligados ao crime (jogos legais e legais, prostituição, tráfico e suas várias formas de lavagem de dinheiro) e todo tipo de bico transformado em “empreendedorismo”. Não tem lei que dê conta de transformar em relação de trabalho vinculado e ligado a produção o que por sua organização não o é.

Motoristas de aplicativos, inclusive os de Uber, são uma reação ao desemprego estrutural e em massa, e se constituem lutando exatamente contra o trabalho formalizado pelo Estado através das concessões municipais dos táxis. O Uber, ainda que seja uma empresa transnacional multibilionária que explora um aplicativo, trabalha com pessoas que trabalham para si mesmas e utilizam o aplicativo para acessar as corridas dos passageiros. É louvável o esforço de qualquer governo em regularizar e taxar estas empresas, mas não muda a natureza deste trabalho.

Na verdade, nem mesmo os motoristas de aplicativos estão em um processo de formalização em que queiram se transformar em “trabalhadores formais empregados numa empresa chamada Uber”. Vai contra o próprio pensamento “empreendedorista” da maioria deles. É uma relação mitificada e sofisticada, em que a extração de lucro do aplicativo se dá através de uma ideia de que cada um destes trabalhadores isolados é seu próprio patrão (fetichismo) e dono de sua própria jornada. Inexiste um movimento majoritário de motoristas de Uber para isto, para que se vejam como classe na luta contra um patrão multinacional. Há um movimento que dê um lado quer garantias mínimas, mas, de outro lado exige taxações mínimas, menores que as dadas aos táxis, para que eles possam continuar “competindo no livre mercado”.

A luta de classe nesta categoria multifacetada, que não se organiza coletivamente e não produz consciência proletária em sua jornada diária, está muito longe de ser uma luta anticapitalista.
Não, caros amigos Peter Pan extremistas, não é Lula que serve de pelego para evitar uma luta capital x trabalho, é a nova organização precária do trabalho no capitalismo, caótica e multifacetada que oculta esta relação.

Aí, eis que surge um projeto, no Congresso, para regulamentar as relações entre Uber e motoristas de aplicativos. Sim, caros, o melhor dos mundos e o programa máximo seria regulamentar de forma a transformar a relação Uber x motoristas numa relação formal de trabalho efetiva empresa versus trabalhador, disto ninguém tem dúvidas. A questão preliminar é que sequer esta é a reivindicação dos trabalhadores, que não se veem como trabalhadores stricto senso, em sua maioria. De um lado, pedem a regulamentação para que possam efetivamente trabalhar em municípios onde leis própria coíbem o trabalho uberizado, restringindo o transporte complementar somente aos táxis regulamentados pelas prefeituras, e que haja garantias mínimas para que possam exercer esta função. Não é um trabalho com uma carreira, ascensão funcional, objetivos definidos, projetos. Continua sendo um trabalho individual precário.

O projeto de lei do governo Lula, tímido sim, é o adequado para passar num congresso ultraconservador que não aceita pautar nenhum projeto de contrarreforma da previdência ou contrarreforma trabalhista. O Congresso onde a esquerda Peter Pan quer que Lula implante uma regulamentação máxima ao trabalho precário dos motoristas de Uber é o mesmo que não aceita devolver a integralidade da pensão às viúvas pobres do Brasil, ou diminuir o tempo de contribuição para a aposentadoria!

O simples fato de o projeto regulamentar os direitos sociais e previdenciários dos motoristas e exigir uma contribuição mínima à multinacional é um tremendo avanço. O argumento de que a Uber aceita o projeto como está, em lugar de mostrar como o governo Lula está recuado, mostra como a ultraesquerda apenas coloca proposições fora da realidade. Se temos um projeto que vai ser combatido pela ultradireita no Congresso e o governo conseguiu negociar um acordo com a empresa maior afetada, fazendo com que ela aceite a taxação e passe a contribuir para o caixa geral da previdência, só mostra como a Esquerda Peter Pan, inebriada pela possibilidade de lacrar nas redes sociais, não tem nenhuma preocupação que consigamos sobreviver a estes quatro anos de cerco e derrotemos novamente o fascismo, intentando reeleger Lula e reeleger um Congresso menos reaça.

O projeto prevê uma contribuição de 20% patronal calculada em cima dos 8% dos trabalhadores da Uber (quase o triplo), gerando receita para o combalido caixa da previdência, que é um sistema solidário que não serve só para aposentar o motorista uberizado, serve para pagar a pensão do idoso e da idosa que nunca contribuiu, mas que está em situação de miséria (BPC) ou daqueles que não podem trabalhar por algum tipo de doença e tem renda familiar inferior a ¾ do salário-mínimo. Se fosse só por isto, e se o projeto fosse só isto, ele já seria progressista.

O argumento de que não reconhece “vínculo patronal” para rejeitar o projeto é um argumento que elide as correlações de força no Congresso Nacional. O projeto que, em tese, não reconhece o vínculo, obriga a UBER e outras plataformas a descontar compulsoriamente o INSS, a partir daí motoristas de aplicativos estarão inseridos em todos os direitos previdenciários, podendo requisitar não só a aposentadoria, mas requerer que sejam pagos os dias parados causados por quaisquer doenças. De outro lado, a arrecadação compulsória previdenciária será um termômetro para parametrizar e fiscalizar os lucros e remessas da Uber e de outras empresas do Brasil, sendo uma forma de monitoramento para impedir evasão fiscal.
Não é o melhor projeto do mundo, mas sim é um avanço e não, um presidente neoliberal não lutaria para estender direitos previdenciários mínimos para uma categoria de mais de 3 milhões de trabalhadores.


O resto é lacração e síndrome de Peter Pan.

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