Um dos preceitos da regulação de serviços públicos é a independência da entidade reguladora para emitir normativos e tomar decisões na regulação e fiscalização dos serviços. Mas, também, independência em relação ao poder executivo e às empresas e instituições sujeitas aos atos regulatórios. Não é o que se viu no comportamento da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA quando participou do leilão da Companhia Riograndense de Saneamento – CORSAN realizado no dia 20 deste mês na B3 em São Paulo.
Fotos que circulam na internet e vídeo institucional da própria Agência, postado em seu site, mostram a Presidente, um dos Diretores e dois Superintendentes participando de atividade de política pública fora de sua competência, referente à privatização da citada Companhia. Viajaram para São Paulo com recursos públicos para comemorar efusivamente a privatização de serviços de saneamento básico. Onde está a independência da Agência ao se subordinar a determinada vertente da política pública? E o pior, atuando fora de sua competência.
É fácil verificar na Lei de criação da ANA (Lei nº 9.984/2000) que as competências trazidas pela revisão do marco legal do saneamento – Lei nº 14.026/2020 –, não preveem este tipo de iniciativa. Tomar partido e promover um determinado modelo de gestão do saneamento básico em detrimento dos demais representa grave desvio de função e de finalidade da ANA. Seus dirigentes incorrem em erro básico da atividade regulatória.
Quem não se lembra do triângulo que ilustra a independência regulatória ao prever os três atores principais da política pública em cada vértice do triângulo – Poder Público, Prestador de Serviço e Usuários – e a entidade reguladora no centro do triângulo, guardando equidistância dos três vértices? Ao agir como agiu, alinhando-se de modo subserviente à política privatizante para o saneamento básico, a Diretoria da ANA usurpou a mais simbólica figura da regulação independente, reduzindo a Agência a um papel de Governo e não de Estado.
Tal usurpação pode ser entendida, por outro lado, pelo método de escolha de seus Diretores. O Governo Bolsonaro nomeou de uma só vez quatro diretores para uma diretoria colegiada composta de cinco. Ou seja, quebrou-se a regra básica das agências reguladoras cujos diretores não devem ser nomeados simultaneamente, de forma a assegurar autonomia e independência.
É preciso lembrar que, dos quatros diretores nomeados, o mandato da Presidente e de um dos Diretores vai até 2026, de outro Diretor até 2025 e outro até 2024. Também cabe dizer que o quinto Diretor foi nomeado por Bolsonaro, em 2020, com mandato até 2024. Ou seja, nos próximos quatro anos poderemos assistir ao governo determinando os rumos da política em uma direção e a Agência boicotando tal política, atuando no sentido contrário.
Ao deixar de ser uma Agência de Estado para tornar-se um mero braço do Governo, a ANA promove prejuízos irreparáveis tanto à política nacional de recursos hídricos, sua missão originária, e que ora está fragilizada e sob ameaça no tocante à sanha da privatização (projetos de lei tramitando no Congresso), quanto à política nacional de saneamento.
O novo Governo Lula precisa encontrar meios para impedir a continuidade da situação deformada no âmbito da direção colegiada da ANA aqui relatada.
Dentre essas medidas torna-se imperativo, de imediato, que o caso em tela seja remetido à Comissão de Ética Pública e se examine ali a extensão e a gravidade das irregularidades cometidas pelos mencionados servidores da ANA, com vistas ao seu possível enquadramento no Código de Conduta da Alta Administração Federal.
Nessa perspectiva, é bom lembrar que os diretores das agências reguladoras detêm mandato, porém essa condição não lhes dá imunidade quanto às punições cabíveis, inclusive de demissão a bem do interesse público, diante de condutas irregulares cabalmente caracterizadas e comprovadas.