A famosa frase dita por Marx, de que ele não era marxista, era uma reação espantada e irônica diante da salada de entulho que Lassale e os lassalianos apresentavam como marxismo ainda no século XIX. Uma mistura de “amor ao próximo”, congraçamento de classes e proudhonismo confuso cooperativista. O termo marxismo foi depurado deste sentido por Lênin, mas, com este aconteceu um fenômeno semelhante ao que ocorreu com Marx. Morto Lênin, duas tradições interpretativas disputaram seu legado, cada uma amaldiçoando a outra e tachando a outra como traição (como um grande cisma dentro da igreja católica, em que a ordem que vence amaldiçoa a anatematiza a que é derrotada), mas ambas com diferenças bem grandes da interpretação que Lênin dava a Marx, tanto a interpretação trotskysta de Lênin, quanto a stalinista.
De fato, nenhuma das duas é prosseguidora da análise dialética leninista, ainda que em ambas haja grandes lutadores, grandes marxistas e grandes intérpretes de Marx e de Lênin. Mas o fato é que tanto Trotsky, quanto Stálin são revolucionários e teóricos bastante diversos em suas análises e usos da dialética do que era Vladimir Ulianov. Não à toa o termo marxismo-leninismo foi cunhado depois de sua morte e serve de disputa de um legado que mais retira a dialética do marxismo do que contribui para aprofundá-la.
Quando a dialética depende do personalismo para se tornar “sacra”, ela já não é mais dialética. Personalismo, culto à personalidade, ou seja, positivismo anacrônico, já que o marxismo é, desde sua nascença, por questão de método, iconoclasta.
Quem leu Marx conhece a versão debochada e sarcástica que ele dá ao termo ideologia, como epifenômeno deslocado e reificado da realidade e, por isto, sempre destinado a morrer.
Toda ideologia perecerá, inclusive o marxismo. Mas, aí nos auxiliamos de Sartre, e não de algum marxista ortodoxo, o marxismo só está destinado a morte junto com seu objeto de estudo e enfrentamento, o capitalismo. Bem observa Sartre, em “Questão de método”, que aqueles que tendem a realizar a morte precoce do marxismo estão, na verdade, a desenterrar questões pré-marxistas e cometer erros filosóficos e de métodos que remontam aos séculos XVII e XVIII, servindo velharias como grande novidades pós-modernas (Žižek, por exemplo).
O marxismo ainda é o único método realmente eficaz de análise das estruturas do capital e do mundo, porque nenhum outro se dedicou a detalhar a sociedade da mais valia amplificada e do fetiche transformado em religião, como cultura.
Mas há que se pensar no que Marx dizia quando denunciava que toda ideologia tem um que de falsidade. A ideologia é um epifenômeno que acontece em um processo sincrético à vida real, quando descolada dela há uma fossilização, uma reificação de toda e qualquer ideologia, inclusive as assim chamadas de marxistas.
A transformação de conceitos que são reflexos da realidade, como mais valia, imperialismo, luta de classes, frente ampla, etc, em realidades que existem separadas da vida, como corporificações de ideias que tem que dar forma ao real, numa reversão antimarxista da análise: isto é a deformação e a transformação do marxismo numa religião, num corpo sem espírito, que se transforma em dogmática que transubstancializa a realidade ao tocá-la, em vez de fazer sua análise a partir dela.
É o marxismo religioso, ou mágico, que celebra seus magos e mágicos, que dominando suas categorias a impõe a realidade, ignorando os fatos. Se os fatos são contra mim, danem-se os fatos.
Mas porque falar de métodos antes de falar da realidade brasileira? Porque isto é extremamente necessário.
Não que seja uma novidade, o marxismo mágico não é uma invenção brasileira. A ideologia deslocada, que analisa de antemão a realidade para classificá-la, sem ser dialética real sujeito-objeto-sujeito.
Não é abstração da realidade que se volta para ela, para decodificá-la e analisá-la. É dogma prévio que tipifica e classifica a realidade como um biólogo apenas disseca uma borboleta viva, fora do seu processo de vida, retirando da dialética o movimento e transformando as categorias vivas em dogmas mortos, que servem para justificar o mais raso oportunismo.
Há um grande defeito no marxismo brasileiro, o marxismo chegou ao Brasil carente de dialética, durante largas décadas o jovem Marx era considerado um teórico ainda falho que, doente de hegelianismo, só se deve considerar amadurecido depois de O Manifesto do Partido Comunista, e só deve ser estudado em suas obras da “maturidade”. Assim, o marxismo se torna um manual de tomada de poder, ou apenas um exercício de tática, de estratégia, de economia política ou de sociologia (do qual Marx era inimigo declarado).
Supera-se a filosofia pela não filosofia, por uma péssima leitura da décima primeira tese de Feuerbach. A décima primeira é a mais dialética de todos, é a esfinge, que, não sendo decifrada, devora os pretensos marxistas, transformando-os em vulgarizadores popularizadores de manuais de tomada de poder.
Desaparece o Marx emancipador da humanidade, para o qual o proletariado não tinha dons divinatórios, mas era fundamental por ser a única classe portadora da possibilidade de uma universalidade, e entra um obreirismo grosseiro anti-intelectual e anti-estudo acurado. Noite em que todos os gatos são pardos, rebaixamento da dialética a teoria vulgar que possa ser absorvida sem dedicação.
E isto tem efeitos duradouros e devastadores. O marxismo reduzido a simples manual de tomada do poder vira uma espécie de nova religião da palavra, magia divinatória sofisticada, no qual o logos, a palavra, serve para justificar tudo.
Dimitrov, julgado por um tribunal nazista e conclamando os trabalhadores a ser armar e matar fascistas, de uma hora para outra vira o avaliador oportunista de todo tipo de aliança. A Frente Ampla contra os nazistas (que, na política se traduzia em uma aliança apenas entre os comunistas e os social democratas, quando muito, de partidos radicais libertadores e de conteúdo anticapitalista) se torna uma retórica colaboracionista que poderia tranquilamente justificar Vichy.
O abrandamento da dialética a uma retórica pró-poder chega a um nível tal que, alianças militares, que sempre devem ser analisadas a parte, se tornam puerilmente a justificativa para comunistas e marxistas defenderem que se faça aliança com a elite e se coloque dentro da chapa da Frente Popular (que historicamente tem outra conotação e outra característica na América Latina, é de frente popular contra as elites e não com as elites) se ponha a própria elite, a voz do dono, da Faria Lima, o cavalo de Tróia da Fiesp.
Quando leio Lênin cooperando com um general alemão no pós guerra, para evitar que os antes aliados entrassem na Rússia e destruíssem a revolução e o vejo denunciando o general germânico (dizendo claramente que ele era inimigo de classe e naquele momento de cerco militar apenas aliado de circunstância, e que o enforcaria gostosamente se pudesse), ao mesmo tempo que combate qualquer tipo de concessão ao rebaixamento teórico nas alianças do partido, eu fico tentando entender, em que livro de Lênin os marxistas mágicos foram buscar a base do entrismo.
Não, Frente Ampla não é isto que estão falando. É um rebaixamento programático tal, que se eu não fosse ateu, acreditaria que Dimitrov ia baixar em algum terreiro para baixar a porrada nos que estão usando seu revolucionário nome em vão.
Antes que coloquem palavras na minha boca, e digam que estou propondo o programa máximo e a revolução, esta é outra característica do marxismo mágico, as falsas dicotomias.
Além do rebaixamento da teoria a um taticismo mais atroz em que a luta de classes é banida como Prometeu do Olimpo, a outra estratégia falaciosa e infantil do marxismo mágico é rotular os adversários como extremistas que estão defendendo a revolução brasileira para agora.
Para isto usam só o nome do livro, Esquerdismo, doença infantil do comunismo, mas nunca falam muito bem do que o livro realmente fala, assim como aqueles que usam a frase de Marx, A religião é o ópio do povo, em 99% dos casos, nunca leram Crítica à filosofia do Direito e não tem a mínima ideia do que estão falando.
É óbvio que sei, camaradas, que não estamos na Segunda Guerra Mundial, ou às portas da Revolução Russa, mas, então, os culpados de falsas analogias são vocês, não eu. Reconheço o perigo fascista, mas sei muito bem que Churchill não é Alckmin, que, aliás, este não tem nenhum exército e nenhum voto, sua presença na chapa só representa uma capitulação ideológica prévia e um rebaixamento programático inicial, para “não assustar a elite”.
Meus caros, parem com esta falsa dicotomia. Entre o programa máximo revolucionário e o oportunismo mais atroz, a perda do conteúdo de classes, há um mundo de possibilidades. A entrada da Faria Lima em nossa chapa só rebaixará nosso programa, não aumentará nossos votos, nos trará a desconfiança sensata de parte do movimento social e não fará avançar nem um centímetro um programa de emancipação nacional que não pode ser mais do mesmo, expectativa de novo pacto de “consertación”, que nos faça ser mais tímidos ainda do que em 2003 e manter exatamente tudo do jeito que está (que é a expectativa da Faria Lima com seu representante na chapa).
O marxismo mágico elide a realidade e o objeto. Vive de falsas analogias e transforma categorias em realidades que existem em si mesmas descoladas da realidade. Nenhum marxismo é capaz de rebaixar a teoria a um taticismo tão atroz que abra mão previamente da luta de classes. Obviamentee Lula é o único candidato de mudança viável em 2022 e farei a campanha dele, mas lutarei com todas as energias para um programa de mudanças mais radical (aliás, incrível que alguns marxistas detestem esta palavra hoje e adorem a palavra “pragmático’, eu perdi algum livro de Marx ou de Lênin?), sem Alckmin e sem a Faria Lima.
Não reduzam o marxismo a um misticismo que justifica todo e qualquer oportunismo. Marx e Lênin agradecem!