MP 1119/22 e o Fundo de Pensão da União

Esse é mais um capítulo de uma longa série, com várias temporadas e inúmeros episódios, que tem início em 1998, com a Reforma da Previdência na época de FHC

Bolsonaro vai ficar conhecido na História por algumas marcas e declarações bastante negativas durante o seu governo. Ele é o Presidente que tentou transformar o Brasil em um pária nas relações internacionais, que se orgulha da prática da tortura e que defende os tempos tristes e difíceis da ditadura militar. Durante o seu governo o número de mortos pela covid 19 superou a cifra de 660 mil e o nosso País voltou a registrar a triste presença no mapa da fome da ONU.

Enquanto ele tem ocupado o Palácio do Planalto, a inflação anual voltou ao patamar de 2 dígitos e o desemprego se manteve sempre acima de 11% desde o início de janeiro de 2019, tendo mesmo atingido quase 15% em alguns momentos de seu mandato. Quando assumiu o governo, o Brasil ocupava a 9ª posição dentre as demais nações do globo em relação ao PIB. Ele deve entregar a faixa presidencial com o país em 13º lugar. Os índices de desmatamento também atingiram recordes assustadores e as despesas públicas em áreas sociais chegaram a valores mínimos durante a sua gestão.

Mas Bolsonaro também resolveu deixar sua contribuição para o número inédito de Medidas Provisórias apresentadas desde o começo de seu governo. Apesar de sua campanha ter sido centrada na falácia de “uma nova forma de fazer política”, seu mandato e sua família estão recheados de casos e corrupção, ele se jogou nos braços do Centrão para governar com o fisiologismo e teve um número também não comparável de vetos derrubados pelo Congresso Nacional.

Mais uma MP contra os interesses da maioria.

Pois agora, no dia 25 de maio, o Presidente fez publicar no Diário Oficial mais uma peça para reforçar seu recorde, a Medida Provisória (MP) nº 1.119/2022. Aparentemente, trata-se de um documento singelo, com apenas 3 artigos, alterando dispositivos relativos ao regime de previdência complementar dos servidores públicos federais. No entanto, mais uma vez fica demonstrado que as aparências enganam, pois o diabo mora nos detalhes. Esse é mais um capítulo de uma longa série, com várias temporadas e inúmeros episódios, que tem início em 1998, com a Reforma da Previdência na época de Fernando Henrique Cardoso.

À época, a Emenda Constitucional nº 20 estabeleceu a possibilidade de instituição de um regime de previdência complementar para os servidores da administração pública, em tratamento análogo ao vigente nas relações trabalhistas sob as regras da CLT. Assim, foi definida a necessidade de uma lei complementar que tratasse da instituição de entidade fechada de previdência complementar para os servidores da União, Estados e Municípios. No então, a criação da entidade que deveria se responsabilizar pela complementação previdenciária no âmbito da União só ocorreu em 2012. A promulgação da Lei nº 12.618 estabeleceu a instituição do regime de previdência complementar para os servidores públicos federais titulares de cargo efetivo e a criação de três entidades fechadas de previdência complementar, denominadas Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Legislativo (Funpresp-Leg) e Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud).

Financismo sempre de olho na previdência complementar.

O Funpresp do Executivo Federal passou a ter vida própria a partir de 2013 e se apresenta como uma entidade que tende a crescer bastante no futuro, a exemplo da trajetória percorrida ao longo dos últimos anos. Com o fim da obrigatoriedade de pagamento da aposentadoria integral para os servidores que ingressaram no serviço público a partir da criação do Fundo, a maioria dos mesmos realizou um movimento de adesão e ingresso no Funpresp com o intuito de obter a complementação de sua aposentadoria quando deixarem a vida laboral ativa. Os gráficos abaixo exibem o crescimento do fundo, tanto em termos de participantes quanto do volume de seu patrimônio constituído.

Os olhos do financismo sempre brilharam ao focarem no patrimônio das entidades fechadas de previdência complementar. O interesse, sem sombra de dúvida, é o de se apropriar dos direitos de operar os valores trilionários em que transformaram os patrimônios dos fundos de pensão. No processo de definição da legislação básica do setor, buscaram por todos os meios assemelhar os fundos fechados às entidades abertas de previdência complementar. Com isso, pretendiam levar a regulação do sistema para a área da SUSEP, no antigo Ministério da Fazenda. A intenção era considerar os serviços dos fundos de pensão como similares aos títulos de capitalização, modalidade de seguro. Mas foram derrotados nesse intento reducionista. As entidades permaneceram com sua característica previdenciária e passaram a ser fiscalizadas por uma agência reguladora específica, a PREVIC.

Quando da definição do modelo a ser adotado para as futuras entidades de previdência complementar da União, dos Estados e dos Municípios, o “lobby” do sistema financeiro voltou a pressionar para que as mesmas estivessem completamente sob a influência do povo das finanças. No entanto, a definição adotada pelo parlamento compreendeu a particularidade de tais entidades e acentuou a sua natureza pública, inclusive no que diz respeito à vigência das regras do direito público para a atuação das mesmas.

Afinal, trata-se de entidades fechadas de servidores públicos instituídas pela administração pública direta. Assim, torna-se mais do que compreensível que sejam obrigadas a cumprir as diretrizes e a legislação relativas à sua natureza pública. Ao se submeter a esse tipo de “restrição”, a gestão de tais fundos de pensão não encontra o mesmo grau de liberdade e risco daquelas que podem operar apenas seguindo as regras do direito privado.

Pois agora, mais uma vez, a MP 1.119 volta ao tema. Dentre outras mudanças em detalhes a respeito dos diferentes tipos de benefícios a serem oferecidos pelo Funpresp a seus participantes e à extensão do prazo para adesão ao fundo, o texto introduz algumas mudanças malandras e quase imperceptíveis. Por meio de uma delas, trata-se de reafirmar que a entidade deve se balizar apenas pelas leis de direito privado. Assim, o Funpresp passa a conviver no ambiente da selva do financismo livre de qualquer amarra jurídica que a caracterize como aquilo que é a sua própria essência: uma entidade de natureza pública.

A outra alteração é menos sutil e termina por denunciar a manobra em curso. A MP 1.119 retira do texto da legislação em vigor a limitação antes presente relativa ao teto para os vencimentos de seus diretores. Pelo dispositivo existente na lei nº 12.618/2012, a remuneração dos dirigentes do Funpresp deveria obedecer ao teto constitucional, que estabelece o valor máximo a ser percebido pelos servidores públicos como sendo o vencimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse caso, é bem provável que uma aliança do financismo com os interesses de setores da alta tecnocracia da área financeira envolvida diretamente com a direção atual do Funpresp tenha patrocinado essa liberação escandalosa. A mudança assume de forma escancarada o atalho de mais fura-teto para pagamento de salários de servidores públicos em cargos relevantes.

Financismo e alta tecnocracia: aliança para furar o teto constitucional.

Esse é apenas mais uma faceta do chamado caso das “portas giratórias” que se estabelece entre as altas colocações do setor público e do setor privado. Trata-se das perigosas relações incestuosas que ocorrem entre agentes públicos e representantes dos interesses do capital privado. O fenômeno claramente antiético, muitas vezes até mesmo beirando a ilegalidade, pode ser percebido tanto na defesa de determinados tipos de políticas públicas ou de modelo de Estado, quanto no acolhimento de tais servidores quando resolvem sair da administração pública e vão se dedicar de alma cheia ao cumprimento das necessidades do capital. Os anos recentes estão cheios de exemplos desse grave desvio de conduta, uma forma sofisticada de apropriação privada do espaço público.

Ao pleitearem que a função de dirigente do Funpresp não deve se submeter aos limites do teto constitucional, os defensores da medida assumem de forma inequívoca um lado nesse debate. Comparam a remuneração que recebem os pares no setor privado e clamam – ó santa ironia! – por isonomia. De acordo com esse ponto de vista oportunista e imediatista, o fundo de pensão dos servidores não passaria de mera instituição financeira do financismo e assim deveria ser tratado. Apenas mais uma entidade de previdência complementar na selva do mundo das finanças.

A MP 1.119 tem sido objeto do ritmo de tratoragem adotado pelos presidentes das duas casas do Congresso Nacional na defesa dos desejos do Planalto e de Paulo Guedes. Apesar do regime de urgência da matéria e do prazo exíguo para os ritos de tramitação os parlamentares progressistas conseguiram apresentar 200 emendas ao texto original. A intenção é justamente restabelecer os princípios da moralidade no trato da administração pública e assegurar os direitos de seus participantes atuais e futuros. No fundo, trata-se de defender o Funpresp de mais um ato de rapina do financismo.

Com a palavra, a maioria do plenário na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que deverá se manifestar a respeito de tema tão sensível às vésperas das eleições de outubro.

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