O General Pazuello deixou o cargo de Ministro da Saúde e volta para a caserna, de onde nunca deveria ter saído. Sim, sua passagem pelo governo, num cargo de tão alta complexidade, num momento tão crucial, não deixará saudades. Ninguém sabe ao certo por que aceitou exercê-lo: se por vaidade pessoal, se por apego às ideias do Capitão ou se estava cansado da caserna. O fato é que durante o seu período à frente do Ministério a epidemia do Coronavírus saiu completamente do controle e sobrou incompetência e submissão a ideias negacionistas e genocidas. Ele deve saber que sua saída do Ministério não o absolve dos seus graves erros e omissões e de que terá que responder por isso.
A desastrosa gestão de Pazuello à frente do Ministério da Saúde, como era de se esperar, respingou no Exército e, por tabela, no conjunto das Forças Armadas. Esse fato em si já seria deveras preocupante, contudo, o que mais intriga e preocupa é a presença maciça de oficiais da ativa ocupando cargos de alta responsabilidade no governo, em várias áreas. Fala-se em cerca de dez mil militares, entre ativos e inativos, alocados em cargos de confiança. Uma exorbitância. Alguns analistas julgam candidamente que isso se deve à carência de quadros civis ao redor do Capitão, obrigando-o a recrutá-los na caserna. Uma explicação mais radical atribui esse fato ao caráter militarista do governo, ou seja, as Forças Armadas se engajaram num governo delas próprias, cujas diretrizes nasceram no seu próprio seio. É provável que as duas explicações estejam articuladas. Infelizmente.
Independentemente da explicação mais plausível, o fato é que o governo Bolsonaro é um desastre completo, em todas as áreas, e causa estranheza e perplexidade o aval dos setores militares.
O país vive uma grave crise econômica, impulsionada pela pandemia, batendo recordes de quebradeiras de empresas e de desemprego em massa, e não há uma só medida crível de política econômica para enfrentá-la, a não ser a surrada e ultrapassada cantilena de que é preciso fazer o ajuste fiscal e acelerar as privatizações. Na área social grassa o desespero crescente das famílias de trabalhadores, assoladas pelo desemprego, pela precarização do trabalho, pelo colapso das políticas públicas e pelo abandono assistencial. As famílias mais pobres estão literalmente passando fome e o Congresso Nacional, cuja maioria apoia o governo, insiste em aprovar um auxílio emergencial de 250 reais por quatro meses, uma esmola efêmera. Para qualquer área em que se olha e se examina – ciência e tecnologia, meio ambiente, relações exteriores, direitos humanos, educação, e assim por diante – enxerga-se o deserto e o caos.
É no enfrentamento à pandemia, todavia, que o (des) governo Bolsonaro se excede no descalabro. Jamais se viu na terra descoberta por Cabral tanta irresponsabilidade, que já custou ao país mais de 280.000 mortes, a ampla maioria delas evitável, e que desgraçadamente seguirá aumentando numa escalada aterradora, mercê de atitudes negacionistas e desdenhosas acerca da vacinação em massa e de outras medidas protetivas, como o uso da máscara e o distanciamento social, emanadas do chefe da nação. A irresponsabilidade é tal que nem se usássemos todos os adjetivos que o vernáculo permite daríamos conta de qualificá-la adequadamente.
Pois bem, diante desse quadro dantesco é de se perguntar: o que justifica a presença maciça de militares de alto coturno em postos chave do governo? Por que não retornam à caserna e se desassociam, se é que é possível, da imagem crescentemente deteriorada desse governo que aí está?
As Forças Armadas são instituições de Estado e que estão destinadas constitucionalmente a cumprir a nobre missão de defender a Pátria face a agressões externas. Trata-se de uma missão estratégica complexa, a exigir elevada competência profissional, disciplina e dedicação plena. O engajamento maciço de militares, sobretudo os da ativa, em funções variadas no atual governo, passa a impressão de que a missão constitucional das Forças Armadas está sendo legada a segundo plano ou que há capacidade ociosa nas suas fileiras.
No momento em que escrevo estas linhas, leio o noticiário e verifico que a saída de Pazuello do Ministério da Saúde foi recebida com alívio por oficiais do Exército, que não o querem de volta à caserna e, diante das especulações de que o Palácio do Planalto tenta encontrar um cargo para o ex Ministro como “saída honrosa”, também rejeitam essa medida, exatamente temerosos da piora do desgaste já existente.
A manifestação mais robusta e lúcida a respeito dessa situação incômoda às Forças Armadas veio justamente do general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz, defendendo que é preciso alterar a legislação para limitar a atuação de militares da ativa (e de outras carreiras de Estado) na assunção de cargos políticos.
A proposta do General Santos Cruz suscita um debate mais amplo e mais profundo sobre a questão militar no contexto da construção democrática no Brasil: até quando o estamento militar avocará para si a tentação histórica de exercer a tutela sobre a Nação?