Lula, como Ulisses, agora empreende a viagem da volta para Ítaca, ou, como Edmund Danté, viverá o ajuste final de contas com seus detratores e traidores, assumindo o governo dia primeiro de janeiro. Queiramos usar uma metáfora ou outra, não há como ser lenientes com golpistas e traidores, se o sentimento de vingança e o ressentimento não são bons conselheiros, é bom flechar os pretendentes de Penélope, senão eles continuarão a almejar usurpar o trono.
Quem tem acompanhado os artigos que publiquei saberá que dissenti de parte da crítica da esquerda, tanto na visão de que eu via uma impossibilidade absoluta de virada de Bolsonaro no segundo turno, quanto na ideia de que é impossível um golpe antes da posse de Lula. Não há acúmulo de forças para o fascista, atualmente no poder, empreender o putsch final. Uma coisa é certa, nas tentativas de insurgências, sejam revolucionárias, sejam golpistas e contrarrevolucionárias, o momento da arremetida contra o a ordem deve ser tratado como uma ciência, não como algo aleatório.
Tudo que Bolsonaro fez, desde que assumiu o Planalto, foi conspirar para acabar com Estado Democrático de Direito e rasgar o que sobrou da Constituição de 1988. Para isto aparelhou o Estado, implantando uma mafiocracia, que foi desde emendas secretas escusas, a patrocínios mal explicados, com dinheiro público do BNDES para os cantores do agro, a desvio de verbas do MEC para construção de igrejas evangélicas. Um farto propinoduto, cuja extensão não sabemos o tamanho, irrigou uma estrutura golpista neonazista emergente.
Empresário não dão ponto sem nó, não dilapidam seu patrimônio por questões puramente ideológicas. Os empresários do agro e dos transportes, que gastaram rios de dinheiro nos vários intentos golpistas, foram irrigados por uma rede subterrânea de subvenção e patrocínio público, assim como as lideranças neopentecostais, encantadas com os rios de dinheiro que afluíam, desde verbas do MEC a ONGs, que iam de cuidado com crianças indígenas a tratamento de pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos. O farto caudal de recursos públicos e de assalto ao Estado garantiu a “fidelidade” de Malafaia, Valadão e quejandos.
Esta aliança muito espúria entre agro, neopentecostalismo conservador protofascista (que mobilizou contingentes de lúmpen nas grandes cidades para servir de exército bolsonarista) e grandes setores reacionários da classe média, tomou forma como um movimento permanente de massa, que foi muito além da pauta conservadora. O crescimento das células neonazistas no Brasil, principalmente na região sul, é o termômetro desta escalada nazifascista.
Neste angu tem muito caroço ainda, neste exército neonazista ainda há que se inserir a disseminação de armas nos clubes de tiros espalhados pelo Brasil (fala-se em mais de 2 milhões de armas nas mãos de particulares hoje, e que tem que ser desmontados e suas armas apreendidas) e o aparelhamento de associações de praças da PM (inclusive com o encorajamento de motins em estados em que a oposição a Bolsonaro governa, como Bahia e Ceará).
O ápice espúrio deste festim diabólico foi o setembro de 2021, no qual o Brasil ficou muito perto de um golpe de Estado, com a possibilidade de decretação de estado de sítio e dissolução de poderes. Os relatos têm pequenas nuanças, discordâncias sobre o porque do não desfecho, com a decretação de Bolsonaro como ditador. Nos vários relatos o papel principal não nos coube, ao movimento social organizado, mas ao STF, que ameaçou de prisão até o vice-governador de Brasília, caso não agisse para evitar o caos, mas alguns assinalam que foi a falta de perspectiva e projeto que evitou o golpe final de Bolsonaro. Se decretar ditador é uma coisa, manter o poder é outra bem diferente. Sem apoio internacional e sem projeto, na solidão da imensa sala, decorada de forma brega por Micheque, com quadros de Romero Brito, fica a dúvida se lhe faltou a iniciativa de dar o passo, que podia ser em falso e sem retorno, ou para a democracia ou para ele, ou se a ação do STF contra o golpe é que foi eficaz.
De aí em diante, continuam os dissensos nas várias análises. Alguns continuaram a ver uma escalada golpista, eu e alguns poucos outros vimos um declínio do perigo de golpe. O roteiro de 2022, ainda que com algumas manifestações de massa no Rio, Distrito Federal e Brasília (como uma caricatura da tanqueata que ele gostaria de fazer em plena Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, e da qual foi proibido pelo seu Estado maior) era de perda de musculatura para o golpe, incluindo aí a ação subsequente do STF que prendeu várias lideranças e andou bloqueando canais de sustentação empresarial financeira dos eventos. Bolsonaro passava a ser um leão de circo, que ruge, mas não tem dentes nem garras. Não é possível fazer um golpe só com praças descontentes e generais de pijama, há que haver, senão um consenso, pelo menos hegemonia entre os comandos das 3 forças.
Na continuidade, uma PEC de assalto ao erário despejou dinheiro para que ele fosse reeleito. Talvez acreditando que conseguiria manter o poder dentro das quatro linhas, afinal, desde a redemocratização, nenhum presidente eleito perdeu a reeleição com a máquina na mão, o fascista blefou nas ameaças de golpe, ainda que mantivesse sua turba sempre agitada e decidiu que ganharia a eleição. A tentativa malograda de 2021, a flopada da tanqueata em 2022, a total falta de articulação e reconhecimento internacional num possível movimento golpista, a não hegemonia entre o comando das FFAA sobre o não reconhecimento das eleições, a conjunção de vários fatores foi minando o caminho de um possível novo capitólio.
Quando um arremedo das forças originais golpistas saiu às ruas para tentar ocupar vias públicas, e o STF apressou-se em ratificar a vitória de Lula, eu escrevi com todas as letras que não devíamos temer um golpe antes da posse de Lula, nossos problemas começarão a partir do dia primeiro de janeiro. Não era preciso esperar Bolsonaro sair do silêncio e reconhecer a passagem de poder, ameaçando, desde já todavia conspirar desde o primeiro segundo para a derrubada de Lula. Uma olhada desleixada para a conjuntura nos daria este quadro, falta de acúmulo de forças golpistas para evitar a assunção de Lula, mas um governo que começará sitiado, assim como o de Pedro Castillo no Peru, ou de Alberto Fernández, na Argentina.
Dizer que não há acúmulo de forças para um golpe não é negar o perigo dele. Há contradição nesta análise, óbvio que há, a realidade é contraditória. Seu somatório não é determinista, é impossível fazer um “xadrez do golpe”, porque simplesmente os fatores quantitativos e qualitativos se interpenetram e trocam de lugar. É a famosa passagem da quantidade a qualidade marxista-hegeliana, que torna impossível qualquer previsão com determinismo. Análise de conjuntura não é previsão de Mãe Diná ou Nostradamus.
Lula navegará por mares nunca dantes navegados porque simplesmente nunca governou em condições tão adversas. Assim como Ulisses, Lula deverá se amarrar ao mastro do navio que conduz, para que o transatlântico Brasil não seja destroçado entre Cila (uma extrema esquerda com frases altissonantes e nenhum apego à realidade) e Caríbdis (o projeto neoliberal de tentar comer o governo do PT por dentro).
A conjuntura é angustiante. Lula não terá maioria nem na Câmara e nem no Senado, sem ter que se apoiar nesta enorme franja de direita fisiológica a que se convencionou denominar, sem nenhum acerto, de Centrão. Não adianta Samia Bonfim e Glauber vociferarem de que temos que manter nossa castidade ideológica e descer dos montes com os 10 mandamentos do DCE da UFF dizendo que o PSOL não deve fazer parte de um governo de coalizão. A realidade é muito maior que a eleição do DCE da UFRJ ou da USP. Não estamos às portas do Palácio de Inverno em São Petersburgo e nossas tropas não possuem nem atiradeiras. Este governo de Lula é necessariamente um governo de coalizão que fará muitas concessões às forças antagônicas ao nosso projeto, porque é isto, ou é não governar e viver 24 horas sob a pressão de um golpe. E por favor, não me venham com dizeres patéticos de “que temos que governar com povo na rua”. Isto é só uma fala pseudorrevolucionária, cuja última lição aprendida foi a derrota avassaladora da esquerda chilena na reforma constitucional. Detalhe importantíssimo, a esquerda chilena estava melhor organizada que a nossa e teve total hegemonia da rua nos últimos 4 anos no Chile. Tomou uma coça na votação da Constituição e aprendeu que hegemonia nas ruas não é a mesma coisa que hegemonia no parlamento ou mesmo nas votações.
Este palavreado não faz nenhum sentido porque não temos nenhum acúmulo de forças no movimento social que nos autorize a fazer bravatas. Li Lênin e Marx demais para não detectar o que ambos denominavam de fraseologia pseudorrevolucionária pequeno-burguesa. Em política não se blefa no discurso, não se alardeia uma força que não se tem porque o outro lado também sabe contar garrafinhas.
Se algum dia pretendemos governar com o “povo nas ruas” temos que voltar não só a mobilizar, mas a organizar nossas tropas. Reunir-se uma vez por mês para protestar contra o governo Bolsonaro não nos autoriza a dizer que fizemos um bom trabalho de preparação e oposição. Os sindicatos estão quebrados, destruídos, sem fonte de recursos depois do fim do imposto sindical, sem nenhuma outra fonte de recursos que o valha. Não, não se faz luta sindical sem aparelho sindical. Não temos fora dos sindicatos nenhum grande movimento organizado citadino que mobilize milhões. Os 2 que temos, não o são. Um, o MST, é um movimento camponês num país predominantemente urbano, o outro, o MTST, ainda que respeitável, se restringe a uma camada de lumpesinato, ganha para a luta progressista que nunca disputará hegemonia sozinho.
Com bravatas não se ganha uma guerra.
Não, não vamos governar sem o Congresso e através das massas, não, não preparamos uma forma de poder popular como na Venezuela, em que há comunas espalhadas por várias províncias do País e uma assembleia constituinte que foi com voto proporcional a cada segmento social. A conjuntura é complicada, porque somos um movimento de coalizão que derrotou o fascismo e agora precisa desarmar todas as bombas montadas por ele.
Lula terá que governar com o Congresso que tem, será até certo ponto prisioneiro de Artur Lira e Rodrigo Pacheco, e só conseguirá restringir o orçamento secreto se o próprio STF tomar a iniciativa de considerá-lo ilegal. Nunca conseguirá maioria nas 2 casas para soterrá-lo. Terá que governar o tempo inteiro sorrindo e afagando o Centrão, ou não governará. Isto não significa que não governará tocando sua pauta, como o faz agora no caso da PEC do Bolsa Família, no sentido estreito das forças que temos, significa que teremos que pautar o que estritamente, dentro do nosso programa, não açule o golpismo dentro do Congresso mais fascista e conservador da história.
Teto de gastos, orçamento secreto, o orçamento dilapidado pelo aparelhamento de Estado feito por Bolsonaro para tentar a reeleição, a Petrobras servindo aos interesses apenas dos acionistas nacionais e internacionais e não ao povo brasileiro (o petróleo, senhores, lembrem-se, foi central no golpe). As bombas que ameaçam estourar já no dia 2 de janeiro já farão que o governo comece pisando em ovos. É necessário rever a política de preços do petróleo, para isto, é necessário um verdadeiro “paredão” (sem vítimas fatais) na Petrobras. É óbvio que quando Lula mexer na Petrobras, destituindo a atual diretoria e mudando a política de preços o tal Mercado (na verdade a elite do atraso brasileira) reagirá especulando da forma que sabe, evasão de divisas com subida especulativa do dólar, queda da bolsa, etc. Será impossível omelete sem quebrar ovos e, por hora, o discurso é que não podemos governar para o mercado.
Todas estas manobras serão fundamentais para governar, lembrando que do outro lado se construiu um know how golpista. Eles ensaiaram e se organizaram para dar o golpe durante quatro anos. Não vão desistir de o fazer porque Lula agora governa, só se radicalizarão mais e mais. É necessário desarmar a direita fascista no Brasil. Para isto é preciso coragem. Não, o perdão não é solução neste caso, para a tal falada conciliação nacional. Maquiavel falava que o mal tem de ser feito de uma só vez. Lula não pode repetir o erro de nomear um Ministro da Justiça estilo Eduardo Cardoso, cujo esporte era fazer vista grossa a toda e qualquer manifestação golpista, incluindo as polícias federal e rodoviária federal.
Alexandre de Moraes já deu o tom. Tem que se congelar os fundos golpistas e até sequestrar os bens dos sediciosos se for o caso. Não é necessário dar um tiro para isto, basta se aplicar a lei e prender, como feito agora na Alemanha, quem conspira contra o Estado. Superintendente de Polícia Rodoviária que conspira e prevarica tem que ser preso e demitido a bem do serviço público. Empresário que conspira tem que ter os bens sequestrados pelo Estado. Empresa de caminhões que faz locaute em estradas tem que ter os caminhões apreendidos e as contas bloqueadas. Não é possível paz e amor e leniência com quem quer nos matar e nos colocar num AI5. As células neonazistas têm que ser desarticuladas e suas lideranças todas postas na cadeia. Liderança protofascista travestida de pastor, que pede ditadura militar e golpe, tem que ter o mesmo destino.
Aliás, um nó górdio neste caso é o tal “diálogo com os evangélicos”. Precisamente de que estamos falando? Camaradas, vamos dar nome aos bois, não se trata de perseguição ou falta de liberdade de culto, aqui no Brasil qualquer idiota com o sexto ano fundamental pode abrir uma igreja em qualquer esquina, é mais fácil que abrir um boteco. Não, não há restrição, perseguição ou “preconceito das esquerdas”. Há sim um colóquio flácido para bovídeo dormitar que criou um mito de “cristofobia”, numa país 85% declaradamente cristão (entre católicos e evangélicos). No Brasil religião perseguida é o candomblé e a umbanda, num flagrante caso de racismo religioso aberto e acobertado pelo discurso de “liberdade de crença”. Não existe cristofobia, é uma mentira dita mil vezes que acaba se tornando uma verdade. O diálogo deve sim acontecer, de forma laica e não como segmento, já que o que estamos falando, demos nome aos bois, o tal diálogo é de se assumir uma pauta conservadora como sendo “pauta da família”, ou tomar parte numa verdadeira guerra religiosa pela hegemonia da crença no Brasil, guerra na qual a esquerda não pode e nem deve ter lado. O único lado que a esquerda pode ter é a do Estado laico. Boa parte dos pastores eleitos e que fizeram um bloco ultraconservador no Congresso (com raras e honrosas exceções, como Benedita da Silva no Rio) querem ou impor sua pauta ou continuar a receber benefícios impróprios do Estado. De uma forma ou de outra não é um “diálogo possível”. E sim, temos que dizer aberta e claramente que boa parte das denominações pretensamente evangélicas hoje se tornaram células protofascistas com um projeto de poder próprio que passa longe do evangelho. É uma equação difícil o relacionamento com um setor que sim, tem um projeto de hegemonia e de ataque ao Estado laico.
Por fim, fazer um bloco no Congresso, com o Centrão de um lado e o PSOL do outro é uma equação que só Lula poderá (ou não) resolver. Vimos já as manifestações edipianas de Sâmia Bonfim e Glauber Braga contra o PSOL participar do governo petista. Para certos setores do PSOL, muito ligados a uma esquerda acadêmica pequeno-burguesa, que precisa reafirmar o tamanho do seu ego marxista todo dia, é fundamental dizer que são diferentes do PT. A verborragia é revolucionária, a prática é academicista. Não conseguem organizar nenhum setor dos trabalhadores ou das camadas proletárias urbanas, são tão eleitorais (ou eleitoreiros) como gostam de tachar o PT, como nós, mas, para ganhar a eleição na Praça São Salvador, nas Laranjeiras, é necessário recitar Mao Tsé ou Trostky todo dia e dizer que o dia da revolução está chegando (amém!). Entre a verborragia acadêmica de um Nildo Ouriques, ou de um Babá, e a realidade, há uma relação tão íntima quanto a que Nise Yamaguchi tem com a prevenção da Covid.
Fui testemunha do ataque desvairado de setores da extrema-esquerda ao PT entre 2013 e 2015. Foram aliadas indefectíveis do golpe, ou alguém esquece dos discursos apaixonados da Luciana Genro pelo Sérgio Moro, ou das fotos dos componentes do apartamento da Paulinha pendurados no saco do Juiz Bretas? Parte deste povo evoluiu, outra parte ainda está preso em 2013. Aliás, vale à pena perguntar, os Black Bostas estão de férias? Porque foram ferozes inclusive contra o PT e a CUT (rasgaram nossas bandeiras, atiraram rojões contra nós, partiram para o confronto físico). Estas reservas pseudoanarquistas da reação foram incapazes de dar um só peteleco na fascistada vestida de verde e amarelo. Não me surpreenderia nada se ressurgirem das tumbas no dia 2 de janeiro de 2023. Junto com eles virão os Nildo Ouriques e os Babas da vida, gatinhos angorás durante os governos Temer e Bolsonaro, ferozes leões contra o PT, e que não se dão ao trabalho de organizar a classe trabalhadora, até para disputar (o que é do jogo político) a hegemonia com o Partido dos Trabalhadores, mas que preferem fazer o jogo da direita e fazer de tudo para balançar qualquer governo popular quando está no poder. Vomitam uma retórica de pré-revolução que desaparece quando a direita assume o poder. Escutei alguns cretinos dirigentes sindicais do Conlutas afirmarem abertamente que “não há clima para greve agora”, durante os 7 anos somados dos governos Temer e Bolsonaro, os mesmos que decretavam greve por tempo indeterminado, sob qualquer pretexto nos 13 anos de PT, e que ajudaram na pauta-bomba e no golpe contra a Dilma.
Lula tem a seu favor a simpatia de 58 milhões de votos, a lembrança feliz dos seus 8 anos de governo, sua inconteste liderança internacional, a experiência larga como deputado e como presidente, mas navegará por mares nunca dantes navegados. É um governo em Estado de sítio permanente, que terá como tarefa não a de fazer avançar as pautas histórias de esquerda, mas sim desarmar todas as bombas golpistas, montadas pelo nazifascismo bolsonarista nestes últimos anos, e reconstruir o tecido social para que possamos dar um passo à frente já no próximo mandato.
Se queriam um governo radicalmente de esquerda esqueceram de dar a Lula um Congresso radicalmente de esquerda, caros camaradas.
Não se governa com o desejo, se governa com correlação de forças do mundo real, esta verdade de governar baseado na estrutura real do mundo faz parte de uma verdadeira análise marxista da política.