A possível votação do Projeto de Lei Complementar PLP 93/2023 ao longo dos próximos dias coloca algumas dúvidas a respeito das limitações que estariam sendo colocadas na capacidade de o governo Lula efetivamente implementar o programa para o qual foi eleito em outubro do ano passado. Mais do que isso, os dispositivos presentes no chamado “arcabouço fiscal” podem se converter em uma séria amarra para qualquer projeto de recuperação do protagonismo do Estado no momento atual e também no futuro.
Na verdade, o problema todo começou ainda antes da posse de Lula, quando as equipes que operaram a passagem de bastão na Esplanada elaboraram a PEC da Transição. Naquele momento, o futuro Ministro da Fazenda aceitou que a estratégia não fosse simplesmente a revogação do teto de gastos, tal como Lula havia prometido durante a campanha eleitoral. Com isso, a atual Emenda Constitucional EC 126 prevê a necessidade da aprovação de uma lei complementar para que a EC 95 (teto de gastos) seja efetivamente retirada da Constituição Federal. Mas o governo, que tinha um prazo até final de agosto par encaminhar esse projeto de lei ao Congresso Nacional, decidiu antecipar a entrega da proposição.
Além de ter introduzido essa armadilha para si mesmo, o novo governo terminou por encaminhar, de forma apressada sem nenhuma necessidade, um projeto de lei a respeito do regime fiscal após ter ouvido apenas as sugestões do Presidente do Banco Central (BC) e de representantes do sistema financeiro. Fernando Haddad não se encontrou para discutir o tema com os economistas do campo progressista e tampouco com representantes do movimento democrático e popular. Afinal, não se trata de matéria de natureza técnica e que deva ser debatida apenas com banqueiros e com a elite do financismo. Existem visões diferentes no interior das correntes de economistas a respeito da questão fiscal e o evidente impacto de redução das despesas públicas sobre assistência social, saúde, educação, previdência social e outras áreas exigiriam a presença de especialistas nos assuntos para o debate.
PLP 93: a entrega da política fiscal.
Ao fim e ao cabo o processo culminou na apresentação de um conjunto de dispositivos no projeto de lei que oferecem muito mais restrições e condicionalidades ao Executivo do que abertura de espaços para levar à frente projetos de desenvolvimento econômico e social. As propostas consolidadas por Haddad mantêm a lógica de busca de superávit primário a qualquer custo e definem um ritmo de crescimento das despesas a 70% daquele observado na elevação das receitas. Ao identificar a mítica relação dívida pública/PIB como problemática, a exemplo do que fazem os representantes da banca, o PLP 93 busca perseguir um suposto patamar idealizado para o nível de endividamento do Estado. Com isso, pretende evitar o investimento público e as demais despesas orçamentárias não financeiras. Com isso, o pagamento de juros sobre a dívida pública permanece isolado como um gasto governamental para crescer livre, leve e solto. Para ele – e tão somente para ele – não existe teto nem limite.
No entanto, parece que as principais intervenções públicas de Lula no debate político caminham em direção contrária ao que está no interior do arcabouço fiscal. Em pelo menos três oportunidades, ele apresentou propostas e realizou diagnósticos que apontam para a necessidade de recuperação das iniciativas no âmbito do Estado e para a elevação do nível dos investimentos e das despesas públicas. Lula é uma liderança com extrema capacidade de intuição de orientação políticas. Além, disso revelou-se um grande estadista e sabe perfeitamente das suas responsabilidades para resolver as dificuldades atuais e para deixar um legado para o futuro.
Lula durante a campanha.
Ao longo da campanha eleitoral em 2022, ele propunha de forma bastante cristalina a necessidade de revogar o teto de gastos para que o governo voltasse a ter condições de proporcionar melhores condições de vida para maioria da população e lançasse as bases para um projeto de desenvolvimento de médio prazo. Ora, revogar a EC 95, introduzida por Temer & Meirelles em 2106 e mantida pelo governo do genocida desde então, era a forma mais evidente de eliminar barreiras para que o governo retomasse as rédeas sobre uma dimensão fundamental da política econômica – a política fiscal.
(..) “A quem interessa o teto de gastos? Aos banqueiros? Ao sistema financeiro? Gasto é quando vc investe um dinheiro que não tem retorno. Quando vc dá 1 bilhão pra rico é investimento e quando vc dá R$ 300 pro pobre é gasto?! Nós vamos revogar esse teto de gastos.” (…)
Ainda durante os meses que antecederam o pleito presidencial, Lula mencionou por diversas ocasiões a analogia com o lema de Juscelino Kubitschek. Na década de 1950, o presidente havia prometido um robusto programa de investimentos públicos para o Brasil e defendia que iria promover “50 anos em 5”, uma vez que o mandato presidencial era quinquenal à época. Foram as bases de um importante período do desenvolvimentismo em nosso País. O governo se baseou no Plano de Metas para a mudança da capital para Brasília, para a construção de uma extensa rede de infraestrutura e para a implantação da indústria automobilística, entre outros.
Mais de seis décadas depois, Lula lançou o desafio de promover “40 anos em 4”, aludindo às necessidades de reconstruir tudo aquilo que foi destruído no Brasil a partir do golpe representado pelo impedimento de Dilma Roussef em 2016.
(…) “Nós vamos tentar fazer 40 anos em 4, porque o Brasil precisa de urgência para recuperar o emprego e a qualidade de vida do povo.” (…)
Balanço de 100 dias: importância do setor público
No dia 10 de abril ele apresentou um discurso para marcar a passagem dos primeiros 100 dias de seu terceiro governo. Depois de apresentar as realizações e os avanços obtidos nesse breve espaço de tempo, Lula reafirmou seus compromissos para que o legado do conjunto do mandato seja efetivamente capaz de atender às expectativas da população e às necessidades do País.
(…) “Retomamos a capacidade de planejamento de longo prazo. E esse planejamento será traduzido em um grande programa que traz de volta o papel do setor público como indutor dos investimentos estratégicos em infraestrutura.” (…)
(…) “Articularemos ainda com mais eficiência os investimentos públicos e privados e o financiamento dos bancos oficiais, em uma mesma direção: a do desenvolvimento com inclusão social e sustentabilidade ambiental.” (…)
Ora, o PLP 93 foi ainda piorado pelo Substitutivo apresentado pelo relator na Câmara, o deputado conservador Claudio Cajado (PP/BA). Com isso, as intenções de Lula para elevar os investimentos públicos ou robustecer o papel dos bancos do governo federal para o novo ciclo de desenvolvimento encontram-se gravemente prejudicadas.
Lula no G7: responsabilidade social e Estado indutor.
Por outro lado, se existe um setor em que o atual governo está desempenhando com excelência suas funções trata-se com certeza das relações internacionais. Foi, aliás, na reunião do G7 realizada recentemente no Japão que Lula fez algumas importantes intervenções perante as lideranças dos países mais desenvolvidos. Mais uma vez, fica nítida a diferença existente entre o discurso para fora e as restrições impostas pelo PLP 93.
(…) “Desemprego, pobreza, fome, degradação ambiental, pandemias e todas as formas de desigualdade e discriminação são problemas que demandam respostas socialmente responsáveis. Essa tarefa só é possível com um Estado indutor de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos fundamentais e do bem-estar coletivo. Um Estado que fomente a transição ecológica e energética, a indústria e a infraestrutura verdes” (…)
Assim parece que existem dois Lulas. De um lado, aquele que percebe a importância de o Estado e o setor público estarem em condições de cumprirem com as necessidades da maioria da população e da alavancagem da economia. E isso implica em investimentos robustos do governo e níveis elevados de despesa pública. Para esse projeto, as ferramentas da política fiscal são fundamentais.
Mas, por outro lado, existe um Lula cujo governo parece dar aval justamente à estratégia de subserviência aos desejos do financismo. Ao menos esta é a impressão que passa pelo teor do PLP 93 apresentado ao legislativo e pela concordância com os retrocessos introduzidos pelo relator. Em troca de um suposto bom mocismo, o governo entrega também a sua soberania na condução da política fiscal. Assim, esta outra dimensão da política econômica também fica sequestrada, ao lado da política monetária e da política cambial.
A tática equivocada de Haddad na condução da matéria terminou por criar uma política de fato consumado. O projeto foi elaborado sem a participação dos setores progressistas e agora, no ambiente polarizado da disputa parlamentar, o governo ainda busca impedir que os retrocessos sociais e os equívocos econômicos sejam objeto de debate e de emendas. Em outros períodos de nossa História, esse tipo de conduta não apresentou os resultados desejados. O estelionato eleitoral promovido por Dilma em 2015, ao nomear Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e abrir o espaço para a recessão austericida, indicam o erro da adoção de tal tipo de estratégia.
Marx dizia que a História se repete: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Felizmente ainda estamos no começo do terceiro mandato e ainda há tempo para eventual correção de rumo.