Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Tenho escrito, em 2020, exclusivamente sobre temas de ordem pública, nacionais ou internacionais, econômicos e não-econômicos. Acredito que conquistei o direito de voltar a ser hoje um pouco mais pessoal. Pode ser? O leitor ou leitora não tem como, de certo, responder diretamente, mas pode parar de ler aqui. Espero que não o faça, e prossigo.
No final do ano passado, lancei um livro – O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. Transcrevi o longo subtítulo, pois dá uma boa ideia do que é o livro. Trata-se da obra mais pessoal que publiquei até agora, superando o meu até então preferido – Da crise internacional à moratória brasileira, publicado em 1988 pela editora Paz e Terra –, que relata minha participação no governo brasileiro entre 1985 e 1987 e, em especial, na polêmica suspensão de pagamentos da dívida externa, decretada em fevereiro de 1987. Repare, leitor ou leitora, que os meus dois livros prediletos, dos tantos que publiquei, são frutos de vivências práticas e sofrimentos – não sou, nunca serei, um teórico, dado a reflexões abstratas em uma torre de marfim qualquer. E, houve sofrimento, sim, nas duas experiências, na mais recente, assim como na mais remota.
Mas o livro de 2019 supera o de 1988, a meu ver, basicamente porque hoje escrevo melhor do que escrevia aos 33 anos. Na época, não sabia expressar sofrimento muito bem. Hoje, sei. A prática é tudo. Muitas coisas pioram com a idade, óbvio, mas a escrita não, ou não necessariamente. Não mudei desde 1987-1988, sou essencialmente o mesmo. E tudo que aconteceu desde então pode ser visto – recorrendo a palavras do filósofo romeno, Emil Cioran, uma espécie de Schopenhauer ou Nietzsche do século XX – como um longo e supérfluo trabalho de verificação. Mas não sou pessimista como Cioran, e fico com a frase suprimindo “supérfluo” e, com isso, a conotação negativa ou derrotista, típica dele.
Por que estou dizendo tudo isso? É que livros escritos desta maneira, a partir de vivências e sofrimentos, com o coração por assim dizer, demandam, em primeiro lugar, a atenção dos amigos e familiares. Dos amigos não tenho de que me queixar. Mas da família… Não vou dizer mais nada, para não agravar problemas familiares políticos que remontam às ridículas passeatas pró-impeachment de 2016, época em que residia na China, por ser vice- presidente do banco de desenvolvimento dos BRICS em Xangai, e acompanhava à distância, estarrecido, os acontecimentos brasileiros. Retiro inclusive o “ridículas” da frase anterior. (Mas o leitor ou leitora percebe, claro, que o adjetivo, embora retirado, ficou…)
Falo, falo e não chego onde queria chegar. O livro mais recente teve sucesso. É o mais vendido dos que escrevi (o que não quer dizer grande coisa, reconheço). Em janeiro, a editora teve que solicitar às pressas uma reimpressão de 3000 exemplares porque a primeira edição de 7000 ameaçava se esgotar. Veio a pandemia e atrapalhou tudo, mas já estou pensando em uma segunda edição corrigida, com elementos inéditos.
Mas, como ia dizendo antes, o livro não teve grande repercussão na minha própria família. Poucos leram, na verdade. Alguns leram partes e não gostaram muito. Passei a dizer a eles que, se meus inimigos soubessem disso, diriam certamente: “Um autor que não é lido nem na própria família”. Pior: nem na própria casa. Irmãos, sobrinhos, enteadas, ainda vai. Mas minha mulher, Lia – de quem estou separado no momento, talvez não para sempre – leu uns pedaços logo que ele saiu, e desistiu. Isso apesar ter partilhado muitas das experiências de Washington e Xangai, que constituem o cerne do livro,
Por quê? O livro é palpitante, acredito. Não vou tentar explicar aqui os embates mais sangrentos ali contados. São muitos e, modéstia à parte, interessantes. Por exemplo, os meus conflitos com o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, inclinado a transmitir recados do secretário do Tesouro, seu homólogo nos EUA. Ou a ocasião em que quase fui derrubado do FMI por defender a Grécia de forma arriscada. Ou a verdadeira perseguição que sofri dentro do Fundo por lutar, talvez demais, pela reforma da instituição. Ou, ainda, as graves dificuldades internas do banco estabelecido pelos BRICS, que sofreu com a falta de dedicação e visão do seu primeiro presidente, o indiano K.V. Kamath, assim como da maioria dos seus vice-presidentes, e a minha luta para lidar com isso.
São apenas alguns de muitos embates. Não é um livro para economistas apenas, nem primordialmente para eles. Mas nada disso parecia motivar meus familiares, inclusive um irmão economista. E, em particular, não interessava à Lia, que tinha vivenciado parte da história – embora tenha ficado menos do que eu queria em Washington e Xangai.
Em determinado momento, achei que a minha sorte estava virando. Eis que O Brasil não cabe no quintal de ninguém apareceu de repente no topo de uma pilha de livros na cabeceira do lado dela da cama. Era um prenúncio, pensei.
Não, infelizmente, não. Livro de cabeceira, como tudo, é relativo. Passaram-se semanas e meses e ele continuava lá, intocado, exatamente no mesmo lugar. Lia estava redefinindo, pode-se dizer, o conceito de livro de cabeceira, que passava a significar aquele que a pessoa não abre em nenhuma hipótese, nem sob coação, nem a tiro. Tempos depois, o livro sumiu da pilha. Indaguei do seu destino e fui informado que ele havia sido transferido para uma estante, sem ser aberto de novo em nenhum momento. Depois ela confirmou que havia lido apenas a apresentação e algumas crônicas na parte final, uma das quais dedicada a ela.
Decepcionante, pois afinal, como até registro na apresentação, as vivências e embates relatados foram, em alguma medida, também dela, ela que esteve comigo grande parte do tempo no exterior. Apesar disso, não se dispunha a dar atenção ao livro.
E, no entanto, como dizia Fernando Pessoa, a verdade é que atrás do “apesar” se esconde às vezes um “porquê”. O trabalho me absorvia muito, mas muito mesmo, em Washington como em Xangai. O comentário mais interessante – e sentido – que Lia fez sobre o livro foi que a sua relutância em dedicar-se à leitura decorria justamente de os relatos ali contidos remeterem a lembranças tristes, de solidão, de certo abandono em que ela ficava, longe de casa, das filhas e dos netos, em países estrangeiros, cujas línguas não sabia ou não dominava bem.
O tempo não cura nada, dizia Ludwig Marcuse, apenas tira o incurável do centro das atenções.
Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital, em 7 de agosto de 2020.
2 respostas
Paulo Nogueira Batista Jr., sempre inspirador!
Gosto muito desse estilo pessoal de contar histórias complexas. Como escreveu Kundera, o romance é a história contada a partir da existência. Não sei se é vicio de psicóloga, mas deste lugar que tudo fica mais interessante. Eu, ainda nem comprei o seu livro (falta tempo), mas o titulo é muito intrigante. Acho que vou aguardar a edição revisada, porque estamos precisando de boas ideias, urgentemente.