O estranho caso de amor da esquerda brasileira com o chauvinismo grão-russo.
O debate sobre geopolítica no Brasil dos últimos dias virou um grande Fla x Flu de final de campeonato. Não há espaço para dúvidas, ou você defende o governo pró neo-nazista ucraniano, ou você defende o russo vingador comunista da URSS, ops, quis dizer, Rússia, e o exército vermelho, novamente justiçando a Europa e nos livrando, pela segunda vez do avanço das tropas da SS. A história se repete, mas, desta feita, como farsa. Sim, a URSS livrou o mundo do nazismo, não, a Rússia não tem como objetivo geopolítico estratégico livrar o mundo do fascismo.
Nesta discussão maniqueístas de ouvidos surdos, criticar à estratégia de Moscou pode te levar ao mármore do inferno da esquerda brasileira. Nos últimos dias você pode escolher o melhor epiteto para usar para mim, o que seria a motivação ideológica de um texto contra o retorno histórico do Exército Vermelho: agente da CIA, quinta coluna, trostkysta desvairado, putinha dos EUA, crítico neoliberal ensandecido.
Como numa arquibancada ensolarada, prestes a uma decisão por pênaltis, ter uma outra opinião pode ter levado a ser linchado, por não fazer parte de nenhuma das turbas contenciosas em disputa.
Outra estratégia usada é o de calar todos os que não sejam “estrategistas de geopolítica”, que no Brasil se reduziriam a meia dúzia de 3 ou 4, com voz privilegiada em canais de esquerda.
E como a coisa funciona?
Estes estrategistas dão o tom da “crítica” permitida, e esta é repetida ad nauseam como visão permitida na esquerda.
O incrível desta crítica é que ela é pouco crítica, há pouca diferença no que fala um “estrategista internacional” do PCO ou do PC do B.
Ou se é pró-Putin ou se é pró-Ocidente.
Uma das coisas mais doidas que ouvi nos últimos dias foi a repetição da frase “Lênin estava errado”, e não, não escutei isto de liberais de direita, de monarquistas chauvinistas ultranacionalistas da boca para fora, de ninguém do outro lado. Eu escutei inclusive de alguns que se autoproclamam como leninistas e de marxistas que buscam abrandar o alance do internacionalismo proletário, porque sabem que através de Lênin, este tipo de análise perderia o vigor. Até citações completamente descontextualizadas de Rosa Luxemburgo (que foi parceira de Lênin na defesa do Internacionalismo proletário) eu ouvi, para, de alguma forma defender o indefensável.
Vamos lembrar, o ano é 1914, e se dá o grande cisma da esquerda mundial. O movimento social-democrata internacional, a Segunda Internacional (lembrar que aí, social-democracia era sinônimo de comunismo) decide, diante da Primeira Grande Guerra, aprovar a palavra de ordem de “guerra defensiva” e de “defesa da pátria”. Lênin e Rosa se tornam ínfima minoria (até a Revolução Russa) na Segunda Internacional, que racha. De um lado, o que agora vai passar a ser definitivamente a Social-Democracia Internacional, que defende a guerra; do outro lado, os marxistas, comunistas, que saem da Segunda Internacional denunciando o social-chauvinismo, e adotam como estratégia a luta contra a guerra e a ideia de voltar a arma contra os opressores de classe.
Lênin e Rosa se tornam minoria (estavam do mesmo lado, senhores, não maltratem Rosa Luxemburgo assim) e denunciam corajosamente a guerra nacionalista. Lênin é perseguido (mesmo no exílio) como “traidor da pátria” e Rosa é assassinada. Ambos pagarão um preço muito alto por ser contra a guerra imperialista.
Não à toa, ao começar com a guerra, Putin tem que atacar Lênin. A frase “a Ucrânia é uma invenção de Lênin” mostra a clara diferença entre ambos. Putin não é comunista, aliás, sequer de esquerda ele é. É um conservador de direita, que inclusive financia partidos de direita na Europa. A carência afetiva da esquerda brasileira tem levado a um estranho novo culto à personalidade. Posso ter muitas críticas à Stálin, menos a de que ele não era um socialista partidário da luta do movimento comunista internacional. De Putin não posso falar o mesmo. Não, a Ucrânia não é uma invenção de Lênin, cujo internacionalismo proletário levava a tratar com propriedade a questão das nações (inclusive dentro do seio do próprio partido), era uma nação sem território, assim como o são os curdos, os bascos, os catalães, os irlandeses. A defesa dos comunistas sempre foi pelo princípio de autodeterminação dos povos.
Putin começa a guerra atacando exatamente Lênin e estes princípios. Seu móvel ideológico é a antiga grande Rússia Imperial e o chauvinismo russo, do qual Lênin era inimigo. Na Jabuticaba brasileira de hoje, leninistas abraçam Putin e não Lênin.
Antes que me acusem de “não saber o que é a Ucrânia”, é óbvio que sabemos que a Ucrânia hoje é um Estado fantoche, que surge de um golpe de Estado com um governo pró-fascista. Mas não, revoluções não se exportam. O princípio de auto-determinação dos povos não pode ser substituído pela ideia de que uma nação mais forte militarmente, com a qual possamos guardar alguma simpatia, mas pelo que significou no passado, do que pelo que significa no presente, possa invadir, ocupar e propor uma guerra total de aniquilação da soberania da outra.
No limite da ideia do internacionalismo proletário, poderíamos saudar que a Rússia houvesse ajudado as repúblicas que se insurgiram contra Kiev, enviar tropas ou até soldados para uma insurreição nestes locais. Estaria dentro daquilo que a solidariedade socialista prega. Uma invasão total contra um governo hostil, ainda que simpático a Otan, visando a destituir o governo e, posteriormente, colocar um pró-Moscou, não difere em nada da tática da Otan, com sinal trocado e, não, não há leitura ou princípio socialista que a justifique.
Talvez a esquerda brasileira tenha se tornado ahistórica, e não tenha feito sequer o balanço de 1956, na Hungria, de 1968, na Tchecoslováquia, ou da ocupação russa no Afeganistão. Não há como se derrubar um governo sem se manter permanentemente uma ocupação militar disfarçada de soberania concedida. Assim é em Kosovo, Catalunha, ou em Porto Rico, por exemplo. A situação se mantém pela força, não pela legitimidade. Por mais prolongada que seja a ocupação, ela será sempre uma ocupação com limitação da soberania de outro país. E isto está muito longe daquilo que historicamente defendem comunistas e leninistas.
É óbvio que com o passar do tempo a euforia com a invasão vai se tornar ou um silêncio ou uma falta de análise, assim como foi a histeria de parte da esquerda brasileira com a vitória de guerrilha feudal misógina do Talibã. Uma tal de “geopolítica”, manca de dialética. substituiu a análise de classe dos movimentos e até das guerras, na qual os povos e as classes sociais desaparecem, e a análise via uma espécie de tabuleiro daquele joguinho war, para o qual o povo destes países e sua vontade não contam para nada. São só players: China, Rússia, EUA, e as vontades das nações e dos povos de cada local simplesmente devem ser ignorados. Isto nunca foi a análise marxista de Lênin, que nos deu o princípio do internacionalismo proletário.
A Ucrânia é muito mais do que um “acampamento de nazistas”, boa parte da sua hostilidade contra Moscou vem da dominação centenária da “Grande Rússia Imperial”, assim, encontrou solo fértil para todo tipo de movimento de ultradireita. Durante a Segunda Guerra ela teve autonomia política dada por Hitler e um governo pró-nazista. Ucranianos chegaram a fazer parte da Gestapo e um exército de mais de 2 milhões de voluntários marchou contra Moscou, Leningrado e Stalingrado, eram os mais odiados pelos russos, e executados como colaboracionistas na grande guerra de libertação da humanidade contra o nazismo.
Tudo isto não justifica uma guerra de aniquilação do Estado ucraniano e de transformação dele num protetorado. Guerras de ocupação são mais rápidas no objetivo de derrubar governos do que no de mantê-los. Iraque, Afeganistão, Vietnã, os exemplos históricos pelo mundo, nos dão a desconfiança sobre esta euforia. O diabo é perigoso não porque é mau, mas porque é velho. Há muito se cruzou o rubicão de uma guerra defensável do ponto de vista marxista e internacionalista e a ação se transformou pura e simplesmente numa guerra de dominação de um Estado mais forte sobre o mais fraco, sempre condenável do ponto de vista marxista e internacionalista.
Minha voz dificilmente será ouvida agora. No meio da histeria sobre a ofensiva do “libertador urso russo”. Mas tenho a placidez de saber que, assim como, com o passar do tempo, os defensores do Talibã se calaram diante da tragédia humanitária, e preferem não falar mais sobre o assunto, o resultado de longo prazo de uma ocupação na Ucrânia não pode prometer a paz a nenhuma das nações.
Lênin estava correto e continua correto. Paz entre nós e guerra aos senhores. Não à nenhuma guerra nacionalista de anexação, mesmo que a carência campista de alguns pinte esta guerra como “comunista”. Não a é. Não é uma revolução, muito menos uma insurreição popular do povo ucraniano.