Slavoj Zizek, filósofo e psicanalista esloveno, nos apresenta uma concepção bastante interessante sobre o conceito de ideologia. Segundo ele, a ideologia não está situada em uma dimensão oculta ou escondida: ela se encontra naquilo que evidencia. A ideologia não está por trás da mensagem, de forma velada. Para ele, a ideologia está justamente na frente da mensagem, ou melhor, é ela a própria mensagem.
Seguindo este raciocínio, tomemos como exemplo o slogan “o Brasil não pode parar”. O caráter ideológico desta campanha não se encontra em nenhum significado sub-reptício ou subliminar, mas, justamente, na ideia de que a produção, a economia, em suma, o lucro, não pode parar, ainda que isso incorra em um sério problema de saúde pública e que “5 mil ou 7 mil” brasileiros tenham que morrer por isso. O núcleo da mensagem ignora completamente as recomendações dos especialistas em saúde pública, baseando-se, tão somente, nos interesses econômicos. Afinal, se a realidade não se adequa a esses interesses, pior pra realidade.
É aqui que está a ideologia e esta, por sua vez, permeia nossas vidas muito mais do que podemos imaginar. Enquanto conjunto de ideias, transmite a lógica neoliberal da produtividade, do empreendedorismo de si mesmo, do sujeito sempre disposto que não pode parar ou que não tem tempo a perder, afinal, “tempo é dinheiro”. Em outras palavras, é o ethos do sujeito produtivo, da alta performance, que compreende o corpo como mero mecanismo em contínua atividade de produção de valor e de riqueza.
A realidade pandêmica que estamos vivenciando, evidencia e escancara essa racionalidade do corpo-máquina. O distanciamento social e o confinamento não podem ser empecilhos para o ritmo frenético do sujeito “Red Bull”. O tempo que passamos em casa não pode ser, em hipótese alguma, apenas tempo livre, mas, tempo para: fazer cursos, estudar toda a matéria que se acumulou, escrever aquele texto pendente, se aperfeiçoar profissionalmente, etc.
A lógica da produção ocupa 24 horas do nosso dia e, pior, invadiu nossas próprias casas. Estamos reféns da cobrança de sermos produtivos e o que é mais grave: como já introjetamos essa lógica, somos agora nossos próprios chefes, vigilantes de si mesmos, atentos a todo e qualquer momento de descanso, prontos para lançarmos um “eu não deveria estar aqui sem fazer nada. Eu deveria estar fazendo alguma coisa”.
Nesse contexto, qual tem sido o papel da psicologia? Primeiramente, cabe dizer que não é possível falar desta como se fosse um bloco unitário e uníssono. Detenho-me aqui, especificamente, a uma determinada perspectiva que tem surgido como hegemônica e que podemos chamar de psicologia da produtividade. Isso porque, nos últimos dias, tem pipocado nos feeds das redes sociais, lives de Instagram, grupos de Whatsapp, enfim, em toda sorte de plataformas digitais, dicas, conselhos e sugestões empacotadas de “como cuidar da sua saúde mental em tempos de COVID-19”.
As estratégias são diversas: crie rotinas para si mesmo, estabeleça objetivos do que fazer nesse período, faça uma lista de coisas novas que você gostaria de experimentar, organize seus horários de trabalho para não se perder nessa nova rotina de home office, etc. Em suma, um grande manual de instruções de como se manter ativo e desenvolto em tempos de quarentena.
Não é de espantar, no entanto, os inúmeros relatos de pessoas que têm se sentido extremamente angustiadas por não conseguirem fazer nada nestes últimos dias. Nas redes sociais, o que mais se observa é um fenômeno coletivo onde as pessoas não têm conseguido dar conta desta cobrança por produtividade home office. O que, na verdade, é mais do que esperado, afinal, tudo isso tem modificado radicalmente nossa organização subjetiva e temporal. Acordamos sem saber qual o dia e vamos dormir sem saber que horas são. E vice-versa. Incertezas materiais angustiam ainda mais quem está enfrentando o problema concreto de não saber como se sustentar em meio à pandemia.
No entanto, a grande questão que faço enquanto psicólogo é: o que quer uma psicologia que convoca os sujeitos a se manterem ativos em plena crise de saúde pública? Qual o objetivo de uma psicologia que endossa essa cobrança abusiva e excessiva por produtividade? Tal psicologia, deixa de ter compromisso com a promoção da saúde e passa a ser um mero negócio (etimologicamente, negócio significa negação do ócio). Transforma-se, meramente, em um instrumento de controle, à serviço da ideologia da produtividade.
É obvio que, enquanto profissionais de saúde mental, devemos pensar a fundo sobre o momento e reconhecer que todas essas mudanças implicam em produções de sofrimento psíquico, de forma individual e coletiva. É legítimo que contribuamos com a difusão de estratégias que visem minimizar os impactos deste novo cenário que se apresenta. No entanto, sem perder de vista o nosso papel político diante de tudo isso.
Uma psicologia que individualiza estas questões, que padroniza e homogeneíza as estratégias de autocuidado (ignorando completamente que a maior parte das pessoas sequer pode ter garantido o direito de experienciar este momento de distanciamento social com alguma dignidade), difunde e endossa essa logicidade de hiperprodutivismo neoliberal e dá de ombros com as determinações sociais que alicerçam e condicionam o mal-estar gerado nesse contexto. É, mais uma vez, uma psicologia à serviço dos interesses econômicos.
O compromisso ético-político da psicologia deve ser o de denunciar e evidenciar as condições que determinam socialmente o sofrimento psíquico. Isso vale, ainda mais, em um contexto de pandemia que suspende completamente nossos parâmetros e referenciais de organização subjetiva e social.
No entanto, não é verdade que todos os desafios que temos vivenciado tenham surgido simplesmente com a emergência desta crise sanitária. Pelo contrário, talvez estejamos atravessando tudo isso de forma tão traumática porque já havia algo de muito errado com a forma que nos organizamos socialmente.
Nossos problemas atuais decorrem, em especial, das condições de vida que aprendemos a naturalizar até então. É muito pouco pensar apenas em como minimizar os impactos psicológicos do período de quarentena, ainda que isso seja importante. Talvez nossa maior preocupação, neste momento, deve ser em evitar que retornemos à fantasia da “normalidade” que vivíamos até então. Afinal, foi esta suposta normalidade que nos trouxe até aqui.
As situações de crise apontam para modos de resolução das contradições que se tornaram obsoletas. Precisamos, sobretudo, apontar para um novo modelo de sociabilidade e de solução de nossos problemas. Merecemos muito mais do que, apenas, “voltar ao normal”.
2 respostas
Olá, antes de mais vai o meu agradecimento pelo post. E dizer que é muito interessante o despertar trazido nessa reflexão a respeito do que deve ser o nosso compromisso ético-político da psicologia.
Obrigada…
Obrigado!