Há aqueles dias em que a distopia é tão grande que a gente se sente como aqueles japoneses deixados em alguma ilha do pacífico, que 40 anos depois, achavam que a Segunda Guerra Mundial não tinha terminado. Ultimamente, este velho dinossauro marxista tem se sentido um sobrevivente da guerra fria, algo como aquela mãe do filme “Adeus Lênin”. É um sentimento agônico, mas, de certa forma, ainda é um refúgio contra o avanço de uma esquerda BBB que acha que faz luta de classes eliminando um racista no programa da Globo, mas financiando a imbecilidade coletiva.
O Brasil virou uma grande distopia, entre sociopatas antivacinas, terraplanistas anarcocapitalistas e supremacistas brancos tupiniquins mestiços, só é possível sobreviver enxugando uma ou duas garrafas de boa cachaça diariamente. Como diria Vinícius, “hay dias que não sei lo que me pasa, eu abro meu Neruda e abraço o sol, misturo poesia com cachaça, e fico discutindo futebol”. Mas a distopia não é só da direita. Andei realmente achando que tinha virado Alice e entrando na toca do coelho quando vi a esquerda comemorando, celebrando que “o mercado aceitou Lula”. Quando vi velhos camaradas abrindo Cidra Cereser para celebrar que o dólar caiu e a bolsa avançou, depois que Lula elogiou o picolé de Chuchu, ou repercutindo comentários das agências de risco da bolsa (as mesmas que celebraram o golpe contra a Dilma e a prisão do Lula), ou frases de Aloysio Nunes (o delator de Marighela), Catanhede ou Abílio Diniz, eu realmente achei que estava num pesadelo nonsense e que acordaria no dia seguinte achando que tudo foi só um pesadelo.
O Brasil virou Macondo e talvez tenhamos que etiquetar as coisas para não esquecer. Assim como José Arcádio Segundo sabe que os massacres na Colômbia foram reais, embora a imprensa fizesse questão de ignorar o trem cheio de cadáveres, agora não é só a imprensa. Parte dos meus amigos fazem questão de esquecer o que fizeram FHC, Aécio, Alckmin, o Pinheirinho, a privataria tucana, o Rodoanel, o papel de todos eles na Lava Jato e no golpe, a ponte para o futuro, a ação do PSDB para derrubar Dilma e depois prender Lula, o projeto de venda do país e transformação em um grande fazendão, nossas diferenças, projetos antagônicos e limites políticos para conversar ou fazer alianças.
Alckmin encontrou Jesus, ou Roque Santeiro, no caminho de Damasco, ou Pindamonhangaba, é agora é o portador da nova verdade revelada da grande coalizão global da humanidade tendo em vistas o futuro.
Deve ser um Universo Paralelo em desencanto, ou um Santo Daime. Todas as diferenças foram apagadas, nem pretos e nem brancos, nem homens, nem mulheres, nem ricos e nem pobres, nem tucanos e nem socialistas. Agora estamos todos juntos para a salvação da pátria ou mátria, ou sei lá que nome vão dar para esta grande ciranda universal onde não teremos mais diferenças ou conflitos. Acordo soado, com a boca seca e meio atônito. Decido sair às 3 da manhã para encontrar algum bar ainda resolutamente aberto pelo Rio de Janeiro. Acabo parando no Flórida, outrora glorioso bar das putas e marinheiros, hoje point de turistas que ignoram a história boemia do bar, que nunca fecha, na Praça Mauá.
Por sorte (ou seria azar), encontro George. George foi meu camarada de tempos de movimento estudantil. Ultra radical, carregava um retrato de Stálin e outro de Enver Hoxha, e defendia que a Albânia era o último baluarte da pureza socialista, me alertava para o pragmatismo capitalista da China, mas dizia que o socialismo ainda tinha salvação. Hoje tem uma página de sucesso na internet, é coach e influencer de esquerda, fez as pazes com a China e não se lembra mais de Enver. Como é coach de sucesso, com aquela plaquetinha do you tube e tudo, fez questão de me pagar não uma cachaça, mas um suspeito uísque Black Label, bebida grátis eu só recuso se vier de fascista.
Papo vai, papo vem, expliquei para George minhas dúvidas e inquietações. Ele, que tem mais de um milhão de seguidores, e faz muito sucesso em seus programas diurnos, nos quais prevê infalivelmente tudo que vai acontecer no mundo, com a precisão de um relógio suíço, fez questão de me tranquilizar:
“Querido, eu vibrei com a notícia do Alckmin. Você não vê? Assim a gente mata a terceira via, a terceira via, nós mesmos a seremos. Não teremos a oposição da direita, porque já incorporaremos a direita no nosso programa, você não entende, porque não leu Dimitrov, agora é tempo de Frente Ampla”.
Nunca um Black Label desceu tão amargo na minha vida. Mesmo de graça, o bicho estava arenoso e rascante. Ainda preferia o velho George fanático pelo maluco das cabras, do que este coach e influencer.
Bunda de malandro velho não se ajeita em calça lee. Sinceramente, senti vontade de deixar de ser ateu, ir a um terreiro de umbanda e incorporar o espírito do velho Dimitrov, só para sair dando voadora em quem anda usando o revolucionário dele em vão. O camarada que enfrentou um tribunal nazista e propunha frente com social democratas, inclusive em armas, parar combater o fascismo, ficou rebaixado a propagandista de aliança com tucanos!
O Brasil é distopicamente uma jabuticaba!
Como vamos acabar com a possibilidade do golpe de direita?
Ué, a gente incorpora a direita.
Acabam-se assim as diferenças!
Jenial! Jenial!
Esta coisa de burguesia x proletariado, rico x pobres, banqueiros x fodidos, tucanos x movimento social, tudo isto é bobagem de marxista velho. A gente pode cantar um “We are the world” em ritmo de ciranda na Praça São Salvador e chamar para dançar conosco agora os tucanos. Aliás, há um tempo atrás tinha gente que queria dançar com o MBL e o Vem pra rua, socialistas que fizeram uma nonsense micareta socialista com fascistas num vazio carro de som, e até tiraram fotos com Kataguiry e Mamãe Falei. Agora nossos ex “aliados” já estão de novos coladinhos no ex juiz ladrão.
Agronegócio x sem terras? Nada, seremos todos amigos e a gente apaga estas diferenças. Controle do lucro das empresas e reestatização das estratégicas? Bobagem, em nome de uma repactuação nacional, a gente rebaixa o programa a 3 refeições diárias, sem assustar o tal do mercado, que agora é nosso amigo.
Este pessoal socialistas e marxista ficou velho, todas as velhas dicotomias serão superadas pela incrível jabuticaba brasileira que vai unir numa super centrífuga a água e o óleo, os socialistas e os neoliberais num programa de redenção universal que faria Gandhi bater palmas de pé.
O problema é que a terra continua redonda, exploradores continuam sendo exploradores, tucanos continuam sendo tucanos, privatistas e entreguistas, banqueiros continuam sendo banqueiros que querem o Estado como seu parquinho, o mercado continua odiando pobre, os latifundiários continuam odiando os sem-terra e não vai ser uma aliança extemporânea, colocando a raposa para tomar conta do galinheiro, que vai resolver nossas diferenças.
Sou um dinossauro sobrevivente da guerra fria mas que não desaprendeu. Inimigo de classe será sempre inimigo de classe.
Fulgêncio Pedra Branca é escritor alcoólatra e hipondríaco. Escreve de graça para esta coluna por falta de coisa melhor para fazer na vida.