E AS DESPESAS COM JUROS?

O grande debate proposto pelos representantes do financismo em nosso País se resume em concentrar a recomendação aos responsáveis pela política econômica para que coloquem em prática a receita da tesoura. Trata-se da conhecida lenga-lenga de que os males do Brasil são os gastos públicos considerados excessivos, com a consequência “lógica” de que seria preciso cortar, cortar e cortar. Essa agenda polêmica e destrutiva foi comprada em sua essência pela alta tecnocracia encastelada nos espaços estratégicos da administração pública federal, em especial aqueles voltados às decisões de política econômica ao longo dos sucessivos governos.

            Assim, não é por mero acaso que assistimos, todos muito surpresos e indignados, a um discurso uníssono saindo da boca dos endinheirados da Faria Lima e de integrantes do primeiro escalão do atual governo Lula. O Ministro Fernando Haddad e a Ministra Simone Tebet, por exemplo, mantêm-se há um bom tempo na linha de frente do combate a conquistas históricas da maioria da população, tal como estabelecidas nos pisos constitucionais para saúde e educação, bem como na vinculação dos benefícios previdenciários ao valor do salário-mínimo.

            Na verdade, tudo se explica pela armadilha em que o terceiro mandato se viu enredado a partir das iniciativas encabeçadas por Haddad no quesito da austeridade fiscal. Ele terminou por convencer Lula de que não valia a pena simplesmente revogar o Teto de Gastos, dispositivo que havia sido introduzido na Constituição em 2016 por Temer/Meirelles e mantido em seguida por Bolsonaro/Guedes. Assim, esta importante promessa de campanha eleitoral de 2022 foi abandonada e em seu lugar foi colocada a Lei Complementar nº 200, tratando no Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Por meio do novo mecanismo, a essência da austeridade no trato das contas públicas ficou mantida e está em vigência até os dias de hoje. É sempre bom lembrar que, para sua elaboração, o projeto da referida medida foi discutido apenas com o Presidente do Banco Central e com alguns poucos presidentes de bancos privados.

Haddad insiste na austeridade.

            Parece claro que não poderia sair nada de muito bom de uma articulação com tal perfil de participantes. Haddad se recusou a conversar com economistas do campo progressista ou mesmo outros que não compartilhassem do credo ortodoxo e neoliberal. Infelizmente, ele conseguiu convencer Lula de tal proposta conservadora e o austericídio segue fazendo parte integrante da institucionalidade da política econômica brasileira. A lógica de buscar superávit primário a todo custo se mantém e ela orienta todas as ações do governo. Além disso, segue valendo a proibição de que as despesas orçamentárias cresçam aos níveis necessários para promover minimamente a recuperação do desastre representado pelos 6 anos dos governos anteriores.

As regras austeras do NAF limitam a evolução das despesas a apenas 70% do ritmo de expansão das receitas. Mas, de forma malandra e maldosa, retiram do cálculo os gastos com o pagamento de juros da dívida pública. Assim, caso o governo não tome nenhuma inciativa para flexibilizar ou superar tal restrição, abre-se o espaço para que o financismo e os grandes meios de comunicação lancem as atuais campanhas em prol do corte de despesas e da redução do espaço do Estado na economia. Mas o importante a reter nesta análise é que toda essa tentativa de emparedar Lula e sua equipe ocorre exatamente pelo fato de Haddad ter insistido com uma outra ideia mirabolante e completamente fora de lugar. Não contente com a adoção do NAF, ele veio com a obsessão inexplicável – transformada em meta de governo – de zerar o déficit fiscal primário em 2024 e 2025. Uma loucura, uma aventura liberaloide sob a forma de um verdadeiro harakiri encomendado.

            No entanto, a pronta e decidida reação do movimento popular e de setores progressistas contra as tentativas de retirar direitos históricos da Constituição terminaram por reorientar a ação de Haddad para incisões em outros programas. Ao invés de reconhecer o equívoco da estratégia de eliminar o déficit em tão pouco tempo, ele insiste em colecionar bilhões aqui e ali por meio de sua super tesoura orçamentária. As medidas ventiladas até o momento referem-se quase todas a cortes nas áreas sociais, com graves consequências para a implementação de políticas públicas voltadas à maioria da população e, o que é ainda pior, elas mantêm o governo completamente imobilizado em sua necessária retomada dos investimentos públicos de vulto. Afinal, sem buscar a recuperação do protagonismo do Estado no processo de desenvolvimento econômico, social e ambiental pouco resta a fazer senão aguardar o milagre das forças livres da oferta e da demanda.

Lula hesita, mas não rompe com austericídio.

            Lula parece ter ficado um pouco incomodado com a insistência do ministro em só retirar direitos dos mais pobres. Mas, ao invés de questionar a essência do cortar-e-cortar-e-cortar, tudo indica que a solução será dar uma bicadinha também nas rubricas orçamentárias das Forças Armadas e na redução de alguns itens de isenção e desoneração tributárias para as empresas. O fato é que permanece a lógica de que os problemas todos se resumem a um exagero de gastos e que a solução de tudo passa pela colocação da roda da austeridade em movimento. Um tremendo equívoco do ponto de vista macroeconômico e um grande desserviço em termos da pedagogia e da consciência da população em relação às questões da economia e da política fiscal.

            Ora, se o foco realmente for este de cortar despesas, Haddad deveria mirar a conta mais deficitária do Orçamento – o pagamento de juros. Além de se constituir na rubrica que mais impacta negativamente a contabilidade fiscal, ela se caracteriza também como uma alocação profundamente regressiva de recursos públicos, uma vez que atende apenas aos interesses do topo da nossa pirâmide da desigualdade social e econômica. Mas o fato é que a tecnocracia se defende de tal sugestão com a desculpa esparrafada de que as despesas financeiras seriam não-primárias e, portanto, não colaborariam para a geração de superavit primário (sic). Então bastaria abandonar de vez essa falácia do cálculo primário e incorporar o conjunto das despesas para decidir por onde cortar.

            Ao longo dos últimos 12 meses os gastos com juros da dívida pública consumiram algo em torno de R$ 820 bilhões do Tesouro Nacional. Mas a estratégia de Haddad passa ao largo desse volume expressivo de recursos públicos e mira apenas nas contas de natureza social. Ao assumir como sua a narrativa da nata do financismo, o ministro considera razoável que os contratos sociais envolvendo os arranjos políticos e institucionais para previdência social, saúde e educação possam ser dilacerados sem nenhum tipo de constrangimento, tudo em nome do bom mocismo e em prol da austeridade fiscal. Já qualquer tipo de aceno para estabelecer algum tipo de controle sobre os juros seria considerado um acinte à ordem econômica, uma quebra de contrato inaceitável. Uma verdadeira afronta aos Deus mercado. Uma loucura!

Juros já consumiram mais de R$ 1 trilhão.

            Já foi dito mais de uma vez que o mais razoável seria aceitar a realidade e incorporar a possibilidade de um déficit nas contas de 2024 e seguintes. Esta tem sido a regra dos últimos 10 anos por aqui e na grande maioria dos países do chamado mundo desenvolvido. Ao contrário do que apregoam os arautos do catastrofismo, a mando do povo da finança, nenhuma destas nações – e nem a nossa! – vai quebrar por atravessar mais um exercício com tais características. Inclusive pelo fato de que estaremos com as contas públicas deficitárias mesmo que Hadddad se esforce ao máximo em seu intento austericida. Isso porque as despesas financeiras também afetam o equilíbrio fiscal, assim como todas as demais. Neste quesito, portanto, não tem como dourar a pílula com a safadeza “primária”. Na real, estamos e estaremos com déficit por um bom tempo.

            Lula precisa saber que, desde 1º de janeiro do ano passado até setembro recente, o seu governo já alocou um total de R$ 1,4 trilhão do Orçamento da União para o pagamento de juros da dívida pública. E é importante sublinhar que neste volume não estão incluídos os montantes para rolagem do endividamento. Trata-se apenas e tão somente do pagamento de juros em sentido estrito da expressão. Se o desejo de Haddad fosse mesmo sincero, bastaria tirar uma casquinha dali para atender aos reclamos da tal da seriedade no controle do gasto público e contra a gastança generalizada de recursos desperdiçados.

            Ao invés de ficar amealhando aqui e ali cortes aleatórios ou ameaças de facadas em contas de interesse social, o Presidente da República deveria orientar seus auxiliares a promoverem a verdadeira justiça social, tributária e fiscal. Para tanto, o caminho mais adequado seria o de cortar no gasto parasita e ineficiente.

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