Por Jacqueline Muniz e Domício Proença Júnior
A pronta ação do Estado não é o bastante para reverter a expectativa de impunidade, resgatar a credibilidade policial ou impedir que outra tragédia assim aconteça. Porque as causas da chacina permanecem. O descontrole das ações da polícia e de policiais tem uma componente estrutural, que tem que ser compreendida.
É preciso pensar antes de agir. Identificar quais aspectos de nossos arranjos de segurança pública favorecem o descontrole das ações da polícia e de policiais, como propiciam a perversão do poder de polícia do Estado em poder autonomizado, ilegal e ilegítimo, de policiais.
Dependemos de diagnósticos densos e abrangentes. Mas esforços nesta direção não têm encontrado respaldo ou apoio. Os inúmeros trabalhos de ativistas sociais, policiais, jornalistas, cientistas e políticos não tiveram desdobramentos em políticas públicas. É como se eles não existissem.
Diante de cada nova tragédia, somos bombardeados por achismos pseudo-ilustrados ou pela (re)apresentação de projetos que, diante do que já vivemos e conhecemos, são inócuos. Convivemos com a exploração cínica da indignação, da dor e do clamor por segurança e justiça. Acostumamo-nos a ver a conversão de propostas e experiências promissoras em corpos sem órgãos a serviço do marketing político mais fugaz.
A questão se resume numa pergunta chave nas sociedades democráticas: como policiar a polícia? Três pontos podem servir de exemplo e de início.
Primeiro, os mecanismos de controle interno e externo das polícias são débeis ou inexistentes: diz-se “cachorro doido, mulher pelada e polícia podem tudo”. Falta tudo aos responsáveis pelos controles internos e externos: autonomia, recursos, mandato, reconhecimento, institucionalidade, articulação. Isto leva a resultados mínimos na prevenção e apuração de possíveis desvios de conduta. O que sobra, então? Apenas os expedientes informais e invisíveis, por vezes heterodoxos, abertos à acusação de serem apenas dispositivos de autoproteção policial.
Somos signatários de todos os acordos internacionais que existem sobre o controle da ação da justiça criminal, dos agentes da lei e, em especial, do uso de força policial. Mas isso nunca se traduziu em políticas, normas e procedimentos que fizessem destes compromissos o critério inequívoco da ação policial entre nós. A tomada de decisão, o monitoramento, a avaliação, premiação e punição policiais estão abandonadas ao voluntarismo, às suspeitas de convivência conivente e de mandonismo da autoridade superior. Não existe um sistema de incentivos explícito e transparente, que identifique, sustente e premie o desempenho desejável da polícia ou dos policiais; que identifique, desestimule e puna o desempenho insatisfatório; que sirva ao autoaperfeiçoamento.
Segundo nossa polícia está aberta à instrumentalização política; diz-se “a polícia tem muitos patrões”. Em princípio, existiria uma política de segurança pública, que incorporaria a participação da sociedade. Ao arrepio desta política, nossas polícias têm que atender a diversas clientelas. A clientela “de cima”, composta de atores dos três poderes que demandam resultados úteis para seus próprios fins e projetos de poder. A clientela “de baixo”, composta de elites e políticos locais, que pactuam trocas de favores por uma atenção diferenciada. A clientela “do lado”, composta de policiais e afins que reorientam a atividade policial por interesses particulares. A clientela da mídia, que confere visibilidade e valora ações policiais em função da sua pauta. E, por fim, a clientela do público, que traz tanto demandas legítimas quanto busca favorecimentos.
Isso compromete procedimentos operacionais, prioridades de patrulha, investigação e atendimento, alocações de pessoal e recursos policiais. A ação profissional de polícia arrisca ser a exceção e não a regra. Ignorar as clientelas pode produzir sanções ilegítimas, internas e externas. Vemos como isto se liga à fragilidade dos sistemas de controle, que são a primeira linha de defesa do profissionalismo policial. Onde isso nos deixa? Diante de uma polícia cuja ação está potencialmente aberta à barganha, à disputa partidária, à apropriação privada. Temos uma polícia vulnerável, insegura diante de sua missão constitucional, embaraçada na priorização de sua atividade-fim. A prestação eqüânime e igualitária de serviços de segurança pública fica comprometida; passa a existir uma expectativa de indulgência e acomodação. Sabota-se a natureza da ação policial.
Terceiro, temos uma responsabilização difusa na Segurança Pública; diz-se “o policial não tem responsabilidade, só tem culpa”. Entre nós, a identificação da responsabilidade formal sobre a conduta e o resultado da ação policial não é claramente atribuída aos vários níveis hierárquicos. A responsabilização policial se encontra num verdadeiro limbo institucional e social. Embora seja a questão central da governança democrática, ela é tão indeterminada que acaba desconhecida dos governantes, policiais e cidadãos. Na prática, a responsabilização policial depende das circunstâncias, e de quase nada mais. A mesma conduta, os mesmos resultados, podem ser tomados como exemplo a ser seguido ou como justificativa para a mais dura punição. A responsabilidade pode recair nos mais diferentes níveis hierárquicos do sistema de Segurança Pública, desde o(a) Presidente da República até o(a) policial mais raso(a).
No Brasil a responsabilização acontece. Opera ao sabor da ocasião, do oportunismo político ou corporativo, dos preconceitos e da pressão social. Se encerra na identificação dos “culpados” por um erro e não mais. Sem clareza sobre quem é responsável pelo que a polícia não tem como saber o que pode ou não fazer; o(a) cidadão(ã) não tem como saber o que esperar e como agir diante da polícia; o(a) governante não tem como saber o que é ou não de sua responsabilidade política. Esta situação gera incerteza e insegurança em todos os atores. O(a) cidadão(ã) sente-se inseguro(a) diante da sua polícia; a polícia insegura em sua ação; o governo receoso das conseqüências de qualquer ação policial; a Justiça incapaz de avaliar o mérito policial de condutas ou resultados.
Neste cenário, de ausência de sistemas de controle interno e externo, de instrumentalização política, de responsabilização difusa é fácil dizer que o(a) Presidente, o(a) governador(a), o(a) prefeito(a), o(a) secretário(a) de segurança, ou qualquer policial “é responsável por tudo” ou que “todos são responsáveis por tudo”. Mas assim se esvazia qualquer discussão sobre as formas da governança democrática das polícias, qualquer consideração estrutural. Aí, não tem jeito.
Dispomos de ciência, vivências e competências para lidar com estes três elementos. Podemos agir com expectativa de sucesso na governança democrática da nossa polícia, desde que construamos a solução estrutural que julguemos viável, aceitável, desejável. Assim, diante da chacina, o que temos não é o pesadelo de que ela prenuncie o nosso futuro, mas a obrigação de dar rumo à nossa segurança pública. Tem jeito sim.
Este artigo foi escrito em abril de 2005 como uma reação a mais uma chacina: a chacina na Baixada Fluminense. Assistimos ao longo destes 16 anos, a reestreias continuadas desta tragédia que se repete como memória que grita a dor, a destituição e a escassez de futuro acumulados. Jacarezinho: seguimos vivenciando de fora, do sofá das salas no asfalto frente as telas dos smartphones e, de dentro, sob o fogo cruzado nas favelas, a reencenação operacional da insegurança pública como um projeto eleitoral de elevada rentabilidade. Complexo do Salgueiro: revivemos o espetáculo operacional do “tiro, porrada e bomba” feito rotina, uma rebobinagem sem fim dos mesmos problemas estruturais já conhecidos da ingovernabilidade policial politicamente construída. Está na hora de dizer de novo e mais uma vez: está ao alcance das nossas mãos reconstruir os mandatos policiais e devolver à segurança o seu sobrenome Pública. Tem jeito sim.