Churrasco com Namastê

Por Fulgêncio Pedra Branca

Nestes tempos muito bicudos, o que me resta é apelar para os amigos para tentar, no rateio, mordiscar um pedacinho de carne chamuscada. Todos sabem que, além de alcóolatra, hipocondríaco, desempregado e de viver de bicos, também sou um homem velho. Um dinossauro de uma outra geração, um sobrevivente da guerra fria, que guarda com carinho seu modelo de T34 na estante de mogno inglês, relíquia e herança de meu velho pai, também ateu e comunista.

Todavia, tenho tentando me modernizar, desde que comecei a namorar Namastê, uma jovem senhora participante, não filiada, de um mandato do partido do solzinho, a quem conheci numa perfomance pós moderna de teatro da PUC, encenada na laje da favela do Urubu. Tem sido uma tarefa inglória aprender o vocabulário e a gramática identitária, e todas as variações do que posso e não posso falar, toda vez que saio com ela para um restaurante vegetariano macrobiótico integral identitário politicamente correto, instalado numa garagem que também é antiquário, no porão de um ex hippie septuagenário, que vive com a mãe, no alto Gâvea.

Tive a péssima ideia de avisar a Namastê que pretendia fazer um churrasco com meus amigos. Depois de ouvir um sermão de 5 horas sobre a flatulência dos bovinos e seu impacto na camada de ozônio, e sobre a tortura de milhões de pintos pela indústria de frango, eu fiquei 5 dias tentando aprender a comer uma gororoba de gluten que ela chama de bife, para purgar meus pecados de carnívoro capitalista destruidor do ecossistema.

Para demonstrar que ela não é tão radical assim, Namastê decidiu ajudar-me na minha lista de convidados para o churrasco. Bem, eu, que fui garoto de subúrbio, nunca organizei uma lista. Chamava os meus amigos para meu quintal, comprava o carvão e avisava que cada um tinha que trazer 12 latões (e já cortava de antemão de chamar alguns salafrários que compram Lokal, mas querem beber a Stella Artois dos outros) e distribuía quem tinha que trazer um quilo de quê, para a patuscada lá em casa. Já convidava Zé Ruela, o guardador flanelinha de carros da minha rua, que se oferecia para trabalhar e comer de graça, e o isentava de trazer qualquer coisa, desde que este não saísse da churrasqueira (serviço que cumpria com denodo e ardor, ainda que comessee 10% de todo o churrasco e bebesse 20% de toda a cerveja). Um aparelho 3 em 1 da década de 80 e alguns Lps e CDs da antiga completavam a alegria daquela turma de bêbados sessentões.

Mas Namastê é de esquerda, mas radical e chique. Disse que estava tudo errado, para começo de conversa ela já aposentou meu 3 em 1 e contratou um DJ que toca samples (eu nem sei o que é esta merda) de diversas músicas, para satisfazer as diversas tribos. Eu até descobri que tem gente no universo que escuta música em coreano (juro que pensei que era uma sessão de exorcismo da IURD) e tive que encostar meus LPS de Agepê, Roberto Ribeiro, Clara Nunes e Bebeto. Reduziu minha lista de amigos sessentões e bebuns a uma lista de apenas 20% de homens barrigudos brancos heteros cisnormativos. Nesta redução cotista da minha lista perdi a amizade de Galo Cego, Cabeção, Todo Torto, Maisena, Pé de Mesa e Requenguela e fui expulso da pelada de sábado por não ter convidado metade do time para o churrasco, bem, churrasco…

Churrasco para mim é carvão, o Zé Ruela na churrasqueira e uma divisão entre os sessentões mais ricos que levariam a picanha (e que, graças aos orixás, Namastê não cortou da minha lista), e a pobraiada que levava a asa e a linguiça (churrasco de pobre é um desfile de Asa e linguiça no prato). Namastê revolucionou minha vida. Para cortar meu colesterol, cortou basicamente a carne do churrasco. A picanha que Mauricinho (não é o nome, é o apelido do rico da turma de infância, que até hoje mora na casa dos pais, e vive basicamente da renda dos imóveis da família) trouxe, basicamente deu uma pequena passada no salão, para horror e olhares de reprovação dos amigos de Namastê, que pareciam estar em um surto psicótico, dançando em coreano algo que eu não conseguia decifrar ser era uma dança, uma evocação do mal ou um canto a natureza cósmica em gratidão.

Zé Ruela teve seu dia de Bela Gil, e o churrasco virou um mar de abobrinha na grelha, abacaxi na grelha, gluten na grelha, folha de banana virgem, cultivada sem agrotóxicos, da Tailândia, na grelha e uma infinidade infinita de mato na grelha que fez com que houvesse uma espécie de mercado mafioso do churrasco. A turma da infância (a qual já riscou meu nome de qualquer convívio social, depois deste churrasco tailandês coreano), se esquivou e foi para os fundos da casa. Maurícinho contrabandeou uma nota de 100 reais para o bolso de Zé Ruela para que ele fornecesse ocultamente carne de verdade, disfarçada em potes hermeticamente fechados, para o ambiente em separado. Parecia uma reunião de criminosos que consumiam álcool ilegal, na era da Lei Seca, mas eram só meus amigos da infância, condenados pela infâmia de serem carnívoros.

Perdido no limbo entre dois mundos, e meio bêbado de uma mistura de cerveja Lokal e um coquetel de ayahuasca e um cogumelo raro e alucinógeno do Tibete, que um dos amigos de Namastê trouxe, fui expulso do convívio social dos 2 grupos, depois de contar uma piada do Costinha, no meio de uma dança de exortação ao sol, que, se eu estou bem informado, todos os amigos de Namastê estavam na posição da Lótus do Ayrton Senna no Grande Prêmio da Hungria, e também dos meus amigos carnívoros e cachaceiros, que disseram que eu os procurasse quando aterrissasse de novo no planeta terra.

Creio que não devo mais fazer churrasco enquanto durar este relacionamento meu com Namastê.


Fulgêncio Pedra Branca é escritor Alcóolatra e Hipocondríaco, escreve para esta coluna por absoluta falta do que fazer na vida.

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