BOULOS

Boulos abriu uma brecha

Por Valério Arcary

É desconcertante que alguns desvalorizem este combate, porque não seria, suficientemente, revolucionário. A acumulação de derrotas e o isolamento infeccionou de sectarismo a mentalidade de uma parcela da esquerda radical brasileira.

A candidatura Boulos/Erundina abriu uma brecha para o futuro da esquerda. Já conseguiu deslocar a relação política de forças entre os partidos na superestrutura de São Paulo. A extrema-direita ficou de fora e uma candidatura socialista disputa com possibilidade de ganhar o 2° turno.

Não creio que seja um exagero afirmar que esta vitória política veio para ficar, seja qual for o resultado das eleições de domingo. Claro que o perigo de estarmos em São Paulo é a célebre ilusão de ótica paulista-cêntrica. Outras batalhas se desenvolvem neste 2° turno em outras cidades, como Porto Alegre, Recife, Vitória e Belém, que são, também, importantes para o futuro da esquerda.

Uma Frente de Esquerda em torno de PT, PSOL e PCdoB é decisiva para o impulso de uma campanha de mobilização de massas pelo Fora Bolsonaro em 2021. A conquista de prefeituras será um ponto de apoio decisivo. As Diretas Já dependeram do impulso dos governos Montoro em São Paulo, Brizola no Rio de Janeiro e Tancredo em Minas Gerais, em 1984. O Fora Collor se apoiou na campanha pela ética na política iniciada por Erundina em 1992.

Esta mudança na cidade que é o centro do domínio capitalista no país só foi possível porque uma oscilação entre as posições de força entre as classes, nas grandes cidades, vinha se desenvolvendo com um giro da maioria para a oposição ao governo Bolsonaro. Mas, não caiu do céu. Não foi um improviso. Não é um acidente eleitoral. A oportunidade poderia ter sido perdida. Ela foi aproveitada, porque uma alternativa foi sendo construída, ao longo de anos, desde 2013, em torno de um projeto, uma estratégia e uma aposta. Ela está reposicionando o PSOL mais forte dentro da esquerda e isso muda muito as perspectivas. Boulos sairá de 2020 muito maior do que era.

O mais importante é que significa, dialeticamente, que o deslocamento favorável na relação entre os partidos incide, também, na estrutura da sociedade, ou seja, na percepção que as classes têm do seu lugar. A maior dificuldade que tivemos na resistência a Bolsonaro foi a falta de confiança do povo em si mesmo. A luta política é uma luta de ideias e propostas, mas, também, um combate pela psicologia social das massas, pela subjetividade dos trabalhadores, pela consciência das massas oprimidas. A possibilidade da transformação da vida começa quando a cabeça das pessoas começa a mudar.

A candidatura Boulos conseguiu conquistar a maioria da classe trabalhadora, que tem contrato na cidade de São Paulo. É espetacular e fácil de comprovar esta conclusão. Boulos tem maioria absoluta entre os jovens de 16 a 24 anos, mas, também, entre quem tem até 35 anos. Tem maioria entre os assalariados com carteira assinada, pretos, desempregados e entre funcionários públicos. É uma vitória emocionante contra a burguesia e seus representantes. Quem é de esquerda e não compreende o significado desta reviravolta, deixou a mente à deriva. Dois anos depois da eleição de Bolsonaro, estamos diante de uma façanha extraordinária.

Calibrar estas mudanças, por enquanto, quantitativas, ainda não qualitativas, é algo que ficará mais claro no próximo período. Eleições são, também, luta de classes. A disputa social e política é ininterrupta. Boulos se reforçou em função do impacto profundo da comoção de repúdio popular ao assassinato de João Alberto. Mas o acesso em condições de igualdade ao horário eleitoral deve ser também considerado, pelo peso que os meios de comunicação ainda mantêm.

Milhões de jovens, mulheres e negros, desempregados e operários, se inspiram em Boulos e Erundina e começam a pensar: será que temos de viver assim? Semear a esperança é incendiar a imaginação de que é possível outra cidade. Uma cidade em que as aspirações, anseios e vontades de cada um se unem em um movimento coletivo para defender que a vida deve vir antes do lucro, os interesses de muitos antes dos privilégios de poucos e o público antes do privado. Quando se defendem valores como solidariedade antes da cobiça, e justiça antes de regalias, estamos mobilizando uma consciência de classe. Isso é, em linguagem marxista, educação classista. Quando as pessoas começam a acreditar que é possível, tudo é possível.

É desconcertante que alguns desvalorizem este combate, porque não seria, suficientemente, revolucionário. A acumulação de derrotas e o isolamento infeccionou de sectarismo a mentalidade de uma parcela da esquerda radical brasileira. A revolução não virá um dia sequer mais cedo porque um punhado de abnegados agitam “Revolução, Já!”, “Greve Geral” e “Abaixo o Poder, Já!”. Esses são os eternos gritos de guerra anarquista, não importando qual seja a relação de forças na situação política.

Há até quem se reconforte argumentando que o programa da campanha do PSOL não mereceria sequer ser qualificado como reformista. Essa crítica não é séria. O programa de Boulos e Erundina é a defesa de propostas de reformas tão amplas que tem uma dinâmica transicional: questionam tudo e por isso são atacadas, furiosamente, pelos reacionários que dizem que não são possíveis. Mas o mais perturbador é que a polêmica entre reformistas e revolucionários na esquerda nunca foi sobre a necessidade da defesa de reformas.

Os marxistas revolucionários nunca opuseram a luta por reformas à luta por revoluções. Defenderam que a luta por reformas, quando conquista o coração de milhões, abre o caminho para a revolução. Porque é a própria experiência prática da vida que deve impulsionar as pessoas para fora dos hábitos de acomodação, dos costumes de resignação, das rotinas de alienação de uma existência frustrada.

Boulos é um lutador social da esquerda. Conquistou o lugar de representante da esquerda em São Paulo porque veio das lutas nas ruas. Ele é o porta-voz do MTST, que conduziu dezenas de milhares em todos os protestos das causas mais justas. Tem uma legitimidade incontestável.  Esta campanha foi somente um começo.

O ano de 2021 será a hora do confronto com os neofascistas, a maior missão de vida da geração veterana da esquerda brasileira. Teremos pela frente uma crise econômica com o desemprego nas alturas, os desafios colocados pela pandemia, a probabilidade de novos choques provocados pelo aquecimento global.

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