A revolução não é uma live de youtubers

E Quixote explicou numa live da Internet a Sancho: “— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas. — Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.”

Assim, começam 90% das lives que prometem um programa revolucionário “avançado” na conjuntura brasileira de maio de 2022. Nossos Quixotes modernos erguem belos moinhos de vento revolucionários para serem derrotados através de twitaços ou petições no Avaaz. Organizam a “classe trabalhadora” monetizando seus seguidores com o patrocínio do banco Itaú e se creem mais proletários e radicais do que o Lula. Zuenir Ventura cita um trecho de um texto de uma das organizações ultraesquerdistas em 1968 o qual cito de memória, de tão engraçado, “se a realidade não se adapta à minha análise, o problema é da realidade”. O show de horrores de análises volitivas sobre a eleição próxima vindoura é de fazer Don Quixote pedir moderação.

Não, não sou daqueles que diz “Lula tem razão”, ou “deixa o Lula fazer o que quiser”, que poderia muito se adaptar a frase idiota dos bolsominions, “deixe o homem trabalhar”. Apoio Lula, defendo Lula, mas sou militante político de esquerda e defendo o amplo debate e o amplo convencimento, sem participar de seitas de adoradores que utilizam o argumento de falácia de autoridade baseado em Lula (e que, sequer, muitas vezes, nem sai da boca do próprio) para defender suas próprias posições oportunistas, sempre as tingindo como “pragmáticas” (a palavra idiota que está na moda). Mas, efetivamente, em uma análise baseada estreitamente na correlação de forças, posso dizer que concretamente Lula é a única possibilidade que temos de sair deste pântano. Fui contra a indicação de Alckmin e disputei a possibilidade de tentar indicar outro vice até onde foi possível lutar (embora, convenhamos, saibamos que esta disputa não foi feita de forma aberta no PT), mas, fato consumado, não vou ficar focado nisto.

Temos uma eleição contra o fascismo a ser disputada, e aprendi (talvez todos os grandes revolucionários de esquerda estejam errados e nossos gênios youtubers é que carregam a nova verdade), que contra o fascismo deve se blocar e se aliar com todas as forças para vencer os nazis.

Temos uma eleição contra Bolsonaro e sua trupe de nazifascistas, com o risco permanente e iminente de derrubada do Estado democrático de direito, não de forma velada, mas de forma aberta e escancarada. O capetão açula suas tropas, diz abertamente que o processo eleitoral eletrônico “será uma fraude”, diz abertamente que não aceitará a derrota, instiga os militares brasileiros (que não tem absolutamente nenhuma “vocação” democrática) a tutelar as eleições, instiga sua horda a utilizar armas durantes as eleições, e tem como inspiração mundial o mesmo sujeito que preparou o assalto ao capitólio. O golpe não é uma “histeria petista”, o golpe está aí para quem quiser ver.

Mas tem idiota pseudo-revolucionário preocupado com a integridade de seu programa de esquerda! Falar em derrubar o teto de gastos como um programa radical pré-eleitoral, do qual não se pode abrir mão, é de uma ingenuidade atroz. Sim, podemos até desfilar esta bandeira pelas ruas, mas, é bom lembrar, o tal malfadado teto de gastos é uma imposição constitucional, para derrubá-lo necessitamos de 3/5 do Congresso, e, duvido muito, que sequer consigamos 50%. Colocar ele como condição sine qua non de uma eleição, que está muito distante de estar ganha, queridos, é só um desejo infantil e narcisista de lacrar.

Qualquer pureza de um “programa revolucionário” diante da conjuntura atual será só mesmo “pureza revolucionária”, que serve tanto quanto a virgindade, esta virtude às avessas, machista e negativa do impulso do gozo, que ao fim e ao cabo não serve para nada, além de uma propaganda neurótica da “castidade”.

Voltando ao mundo real, disputamos as eleições nas piores condições para a esquerda desde 1964. Salvo a memória afetiva da era Lula, não temos muita coisa. Nossos partidos ultra-radicais tupiniquins são brancos, de classe média e falam para dentro. O PCB de 2022 não é o PCB de 1935 de Prestes e Yedo Fiúza, que fez 10% dos votos em pouco mais de 2 meses de campanha eleitoral. Aquele PCB, que historicamente é acusado de “ter pouca inserção operária” tinha mil vezes mais inserção operária do que o atual. Sofia Manzano candidata é só um delírio de um partido que não consegue analisar a conjuntura no Brasil. Consegue analisar a realidade da Venezuela, ou da Colômbia, mas não consegue usar os mesmos parâmetros para sair do fantástico mundo de Bob e ver a realidade nossa. Vera do PSTU ou Babá, estes não dá para levar a sério. Não dá para falar de seitas. E, antes que alguém me diga que uso “argumentos ad hominen”, é exatamente o contrário, toda vez que um destes dois abre a boca tudo que aparece é um ódio edipiano ao PT e a Lula. Não dá para gastar mais que 3 linhas debatendo o sexo dos anjos.

Os partidos de esquerda no Brasil sequer fazem análise da mudança da estrutura de classe no Brasil. Se pararmos detidamente para analisarmos os “programas revolucionários” destes partidos (saídos dos “sovietes operários imaginados” das universidades), eles são alicerçados na ideia de uma classe operária que simplesmente não existe mais. E não existe por 2 razões, não existe quantitativamente, em termos absolutos, a classe operária saiu de um patamar de 30% da mão de obra para pouco mais de 11%; de outro lado não existe qualitativamente, a mudança na organização do mundo do trabalho do capitalismo fordista da esteira e da aplicação extensiva da mão de obra, para o toyotismo robotizado, com aplicação intensiva da mão de obra, provocou alterações, desastrosas para a organização comunista e a social democrata, dentro do mundo do trabalho.

O proletariado e o lúmpen cresceram, a classe operária diminuiu de tamanho. É importante salientar que, se nas décadas de 70, 80 e 90, nossos partidos de esquerda trabalhavam de maneira criteriosa com os conceitos de classe e de fração de classe, tudo isto foi substituído pelo termo “trabalhadores”, que confunde mais que elucida, porque, de fato, fogem do ponto nodal, do nó górdio da crise de representatividade e de organização da esquerda no Brasil.

Com o fim da classe operária fabril tradicional a esquerda brasileira não consegue mais organizar os trabalhadores (agora a utilização generalizada do termo é proposital). A nova classe trabalhadora, difusa e diluída em condições de trabalho precarizadas, é extremamente difícil de se organizar. De verdade, a esquerda brasileira ainda não o fez. A massa de militância radical desta esquerda é branca, de classe média, vinda do estudantado e do ex estudantado radical. Se o PT nasceu de um grande movimento operário irrepetível, de um amálgama da organização de uma gigantesca classe operária, com um grande movimento camponês e também católico de base (as pastorais) e, por último, como cereja do bolo, a intelectualidade radical de classe média, basicamente, o único movimento de massas que continua vivo, não dentro do PT, mas do Brasil, são os sem terra. Os outros foram extintos pelo novo e precário mundo do trabalho.

Qual a resposta da esquerda radical a esta realidade? Utilizar a tese quixotesca permanente de “crise de direção” (se a realidade não se adéqua a nossa análise, dane-se a realidade), e eleger o PT como inimigo preferencial em detrimento da elite nacional. De fato, esta ultra-esquerda não se organiza nas favelas, nos guetos, nos grotões, na comunidade. Organiza-se nos bancos escolares e nos “sovietes universitários – que, óbvio, são importantes, mas não são centrais – e são pífios dentro da massa proletária e semiproletária. O resultado disto? Um discurso radical baseado em palavras de ordem muito distantes do mundo real. Propagandeiam uma revolução não conseguindo sequer 1% do voto da população brasileira. Se o voto não é um movimento revolucionário, é bom lembrar a estes Quixotes, que Lênin dizia abertamente que o voto é o recenseamento de nossas forças. Não se faz revolução com 0,5% de simpatia na população votante e programas monetizados de youtube. A classe operária não está no twiter e a revolução não é uma live.

O fenômeno Lula é irrepetível, porque o movimento operário das décadas de 70 e 80 é irrepetível. Lula não é um influencer ou um youtuber. Não é uma invenção da indústria cultural. O processo orgânico que forja a liderança orgânica Lula não é repetível por desejo, em laboratório ou através de um twitaço. A força eleitoral que ele carrega está ligada a esta trajetória e à memória sentimental que o povo tem de poder comer durantes os 13 anos que o PT esteve no poder.

A correlação de forças é completamente hostil a nós. A ultra-esquerda brasileira me faz lembrar muito da esquerda que fazia oposição a Allende às vésperas do golpe de Estado no Chile. A diferença que aquela esquerda chilena era muito melhor preparada e organizada que a nossa. Antes que coloquem palavras na minha boca e que debito o golpe de Estado de Pinochet à oposição de esquerda a Allende, contribuiu é bem diferente de determinou. Allende vivia um transe histórico, com boicote, estrangulamento econômico e organização das elites para derrubá-lo. A oposição de esquerda no Chile exigia a radicalização do governo e um programa revolucionário que estava muito além das forças reais da esquerda no Chile. Em lugar da revolução tivemos o mais sangrento golpe de Estado da história da América latina, e toda a esquerda, pró Allende ou não, pagou com milhares de vidas. A análise de necessidade de aprofundamento da revolução era apenas um desejo nefelibata, o governo estava prestes a cair e parte da esquerda chilena achava que estava às portas da revolução.

Parte da esquerda brasileira que parece não preocupada em ganhar as próximas eleições (tivemos até um espetáculo grotesco de uma roda de conversa na qual se preparava já a oposição radical a um eventual governo Lula, e que está de férias no governo fascista de Bolsonaro), e mantém esta relação edipiana e neurótica com o PT. O PT e Lula podem e devem ser questionados? Mas é claro! É óbvio, todo debate é necessário e bem-vindo. A hora de fazer isto é numa disputa contra o fascismo? Numa conjuntura de ameaça de ruptura do Estado democrático de direito, com todas as tropas armadas e também as milícias paramilitares do lado de Bolsonaro?

Sério?

Parecem mais preocupados em lacrar, conseguir seguidores, monetizar, ou com o crescimento da própria seita, digo, partido, do que com o futuro do povo brasileiro. Estas eleições são disputadas na pior conjuntura desde 1964, com nossos opositores armados até os dentes e obedientes ao Estado democrático de direito muito mais por uma questão de falta de apoio externo a um golpe de Estado do que por falta de poderio para desfechá-lo. Não se pode brincar de Quixote numa situação destas e apresentar um programa inexequível como alternativa à realidade. Não dá para brincar de física quântica num momento destes.

Mesmo os uivos de “vamos resistir ao golpe com o povo na rua, se for necessário”, não passam de um grito contorcido de dor no meio de um surto psicótico. Não temos povo organizado, não temos armas e não, se houver um golpe de Estado não teremos como resistir. É uma dura e amarga verdade, mas é a verdade. De momento, a tarefa é remendar o que ainda temos de legalidade democrática e ganhar o Estado de volta para tentar desmontar todas as bombas relógios montadas pelo bolsonarismo.

Se não realizarmos esta tarefa imediata, sem nos prendermos às análises grandiloquentes de quem não tem sequer 50 pessoas organizadas apoiando seus discursos megalomaníacos, podemos nem despertar, mas permanecer em 2023, neste pesadelo obscuro que nos foi imposto pelo golpe contra Dilma e do qual a esquerda 20 centavos do “não vai ter Copa” foi parceira e cúmplice.

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