A campanha da legalidade ontem e hoje
A campanha da legalidade teve início no dia 25 de agosto de 1961 e foi movimento decisivo para garantir a posse do vice presidente João Goulart após a renúncia de Janio Quadros e o fracasso de sua tentativa bonapartista. A burguesia brasileira dava sinais claros que já não podia governar e o proletariado tampouco estava preparado para a tomada do poder. O exército – por meio dos ministros militares de então – decidiram que Jango não deveria retornar ao país – estava em missão oficial na China – e menos ainda assumir a presidência da república. A firme liderança do governador gaúcho Leonel Brizola e o apoio do III Exército – fato que demonstraria a clara divisão ou pelos menos a quebra da hierarquia entre os militares das três armas – garantiram, finalmente, a posse do vice presidente trabalhista.
Após intensa mobilização das classes populares, a campanha que iniciara como um movimento destinado a garantir a posse de Goulart, rapidamente se converteria num avanço extraordinário da consciência popular e amadurecimento rumo à revolução brasileira. A luta pela legalidade, portanto, constituía um terreno concreto de avanço da consciência popular e de iniciativas políticas que aspiravam à conquista do poder político pela esquerda. Portanto, a defesa da legalidade ocorria no contexto de um acenso do movimento de massas, de derrotas das iniciativas das classes dominantes, de importante divisão no interior das forças armadas e de falta de unidade na burguesia.
Esse período – entre agosto de 1961 e março de 1964 – representa o auge de um movimento de massas e de transição da consciência ingênua para a consciência crítica, na brilhante formulação do filósofo marxista Álvaro Vieira Pinto.
A resposta burguesa à garantia da legalidade conquistada pela astúcia das forças populares emergiu com a aprovação do parlamentarismo em 2 de setembro de 1961, destinada a garantir a democracia, mas sem conceder capacidade de decisão ao presidente João Goulart e sua aliança de classes sob condução popular. Não teve vida longa, como sabemos. Em 6 de janeiro de 1963 – portanto, pouco mais de um ano após sua instauração – o parlamentarismo foi revogado pelo voto popular. A despeito das moderadas reformas aprovadas sob a condução do primeiro ministro Tancredo Neves, a verdade é que, impulsionado por forte movimento de massas e certa lucidez nas vanguardas políticas da época, o presidente João Goulart defendeu abertamente a necessidade de volta ao presidencialismo contra o parlamentarismo. Ao parlamento não restava outra alternativa senão derrotar uma vez mais as iniciativas burguesas apoiadas pelos setores mais reacionários da classe dominante. Uma vez mais a história ensinava que somente nos períodos de grande conflito, as classes subalternas podem superar suas limitações políticas (consciência e organização) em poucos meses, desvencilhando-se dos obstáculos ideológicos acumulados durante vários anos. O nacionalismo como força política avançava tanto com Miguel Arraes quanto com Leonel Brizola por vias distintas; os sindicatos amadureciam em sua capacidade de combate e protagonismo político. Finalmente, as organizações de vanguarda sentiam o terreno firme sob seus pés para avançar na luta e na teoria da revolução brasileira.
Em face da amnésia histórica produzida por uma esquerda de vocação colonizada e cosmopolita hoje, o contraste dos tempos de então com nossa situação atual não poderia ser mais eloquente. Todos os dias podemos observar novas investidas do governo encabeçado pelo protofascista contra as instituições burguesas (parlamento, tribunais, governadores, imprensa, etc). Toda semana o governo lança declarações destinadas a captar a atenção da esquerda liberal e marcar a agenda do debate público em seus termos. Todo mês, o covil de ladrões que atende pelo pomposo nome de parlamento aprova medidas destinadas a ampliar a exploração da força de trabalho (a MP 1045 foi a última) e assaltar o estado por meio da política fiscal, monetária e cambial. Crise e super lucros pintam a conjuntura sobre a qual os trabalhadores atuam sem diagnóstico e direção política.
A hegemonia liberal na esquerda – cuja liderança ainda é dominada pelo PT – segue atuando exclusivamente na “defesa das instituições e da democracia”, no contexto de uma república burguesa que apodrece aos olhos do trabalhador comum, desprovido de um sindicato combativo, organização política e consciência crítica. Afogado na luta diária pela sobrevivência, os trabalhadores responsáveis pela produção da riqueza apenas ensaiam movimentos em defesa de suas condições mínimas. A taxa que combina desocupados e desalentados (pessoas que desistiram de procurar trabalho) – segundo informação do DIEESE – passou de 16,0%, no primeiro trimestre de 2020, para 19,5%, no mesmo período de 2021. E o dado mais preocupante – também segundo a fonte – é que, entre os chefes de família, essa mesma taxa combinada de desocupação com desalento correspondeu a 11,2%, em 2020, e a 13,4%, em 2021, o que indica maior número de famílias em situação de vulnerabilidade.
A lógica das situações extremas se apresenta de maneira cada vez mais nítida. Entretanto, as convicções republicanas da esquerda liberal não sofrem abalo. O imenso oportunismo político, o apego ao cretinismo parlamentar e um profundo compromisso com a classe dominante, mantêm a esquerda liberal aferrada na ideologia segundo a qual o regime político atual pode recuperar vitalidade se bem conduzido por um novo pacto de classes comandado por algum político vulgar existente em suas fileiras. A massa dos trabalhadores – um verdadeiro exército de desesperados – assiste a tudo sem manifestar rebeldia, mas tampouco qualquer acordo com o roteiro da crise que a condena irremediavelmente ao abismo social.
A classe dominante – uma inédita coesão burguesa – logrou cenário perfeito para a dominação política. De um lado, um presidente protofascista que não vacila em avançar em todas as medidas de política econômica que rende lucros extraordinários e maior poder político a todas as suas frações. De outro, uma oposição de profunda inspiração liberal que se esforça para ganhar sua confiança e, em seus sonhos dourados, conseguir uma fissura entre banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes, industriais decadentes e pequena burguesia empobrecida que pudesse garantir algum poder de negociação para seu programa igualmente liberal.
A “defesa da democracia” encurrala a oposição dominada pela esquerda liberal nos labirintos de uma crise em que ela não entende e para a qual tampouco ensaia saída satisfatória. Incapaz de observar a dialética da luta nos marcos da ordem burguesa, mas contra a ordem burguesa – postulado básico para justificar sua existência num país subdesenvolvido e dependente – a esquerda liberal aposta todas as suas fichas no calendário eleitoral, convencendo-se de que pode bater o protofascista em meio à grande crise econômica, política e social. Engana-se no elementar pois desconhece a lógica de situações extremas que nos governa desde janeiro de 2015, quando a guerra de classes foi desatada pela burguesia ainda durante o governo de Dilma Rousseff e a desconfiança pública sobre o sistema político, os partidos, as eleições, os tribunais, a imprensa, etc, cresceram lenta e inexoravelmente. Não se trata, obviamente, de renunciar as disputas eleitorais. A questão é mais simples: sem um novo radicalismo político programático que toque nas bases da dominação burguesa responsável pela miséria e exploração da maioria do povo brasileiro, não haverá terreno para a esquerda conquistar o apoio das maiorias.
Em 1961 a defesa da legalidade rendeu o avanço da consciência política e jornadas de luta vitoriosas para as classes populares; em 2021 a defesa abstrata da democracia torna a esquerda liberal objeto de desconfiança e repúdio de milhões de trabalhadores que não podem sequer alimentar esperança em dias melhores no interior de um sistema político apodrecido. Em 1961, a campanha da legalidade garantiu a posse de um presidente reformista e permitiu avançar ainda mais nas reformas de base – universitária, urbana, agrária, lei de remessas de lucros, etc – ao passo que, em 2021, a defesa da democracia não faz nada mais que garantir o desbotado ritual burguês de uma república apodrecida em seus cimentos. Em 1961, o movimento pela legalidade permitiu e foi também resultado da consciência nacionalista no interior das forças armadas enquanto a defesa abstrata da democracia em 2021 meramente consolida no interior do alto comando maior fidelidade contra o regime atual considerado indesejável e ineficiente por completo.
Ontem – em 1961 – a defesa da legalidade permitiu maior consciência, força no movimento de massas e jornadas de luta com grandes vitórias para os trabalhadores; hoje, a defesa abstrata de democracia apenas fortalece um sistema político que mesmo funcional aos interesses da coesão burguesa, tem seus dias contatos pelo interesse burguês.
Ontem – em 1961 – a campanha da legalidade movia a consciência e transformava a práxis de milhões de trabalhadores a despeito das ilusões que a liderança do processo também alimentou no reformismo nacionalista do governo de João Goulart. Na atualidade, a defesa abstrata de democracia escraviza a consciência de milhões nos marcos de um regime burguês totalmente hostil a vida dos trabalhadores.
Numa época em que os trabalhadores perderam muito – vida material, consciência e organização política – urge a perda das ilusões. Ainda que sob condições adversas, a perda das ilusões pode ser na atualidade a única conquista capaz de garantir aos trabalhadores algum futuro para a revolução brasileira e a luta pelo socialismo no Brasil.