Eis textualmente o que disse Lula na Etiópia, ao comentar sobre a campanha militar israelense em Gaza: “….o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”. Em nenhum momento ele fez alusão ao Holocausto, de modo que a reação desproporcional do governo israelense é descabida, assim como descabidas são as ilações tortas dos comentaristas aloprados da mídia corporativa servil et caterva.
Cumpre destacar, desde logo, que o Brasil, na pessoa do seu Presidente, jamais deixou de condenar o criminoso ataque terrorista do Hamas contra a população civil de Israel no dia 7 de outubro, cujo saldo deixou 1,2 mil pessoas mortas e 250 sequestradas.
Importante contextualizar igualmente que Lula há muito vem se manifestando inconformado com a tibieza da ONU, que deveria ser o espaço por excelência para se alcançar uma solução satisfatória no conflito de Gaza. Ainda no início desse conflito o Brasil presidia o Conselho de Segurança da ONU e buscou incessantemente negociar essa solução, contudo, em vão, pois os Estados Unidos, detentor do poder de veto, valeu-se dele para impedir sua aprovação. Na sequência, outras tentativas foram feitas, mas igualmente não se logrou sucesso, por conta da posição relutantemente contrária dos Estados Unidos. Tomamos conhecimento agora de que este país, que a cada dia se mediocriza, vetou pela terceira vez consecutiva o cessar fogo em Gaza.
Há na atualidade um marasmo mundial e uma carência de lideranças fortes e inspiradoras, capazes de promover a paz e o bem-estar dos povos. Poucas vozes têm sido capazes de criar algum fato capaz de sinalizar mudanças e isso reflete e explica em larga medida a inação na ONU.
Nesse vácuo, o governo de Israel vem promovendo sem qualquer constrangimento um morticínio avassalador em Gaza, numa escalada desproporcional onde se confrontam uma nação militarmente poderosa e uma organização terrorista. Nunca é demais ressaltar que o ataque criminoso do Hamas à população civil de Israel não encontra justificativa de nenhuma espécie. Foi algo deplorável e que merece punição. Contudo, um estado poderoso e tecnologicamente avançado como Israel deveria ter demonstrado capacidade para prevenir ataques ao seu território e, por outro lado, capacidade militar e de inteligência para fazer o cerco ao Hamas e cirurgicamente derrota-lo, tomando todos os cuidados para mitigar danos à população civil de Gaza e lhe assegurando garantias humanitárias. Poderia também ter feito um esforço diplomático competente para angariar apoio da comunidade internacional, eis que sua ação militar estava amparada no direito à defesa e, portanto, enquadrada nos dispositivos do Direito Internacional. Ao invés disso, o governo de Israel, que declaradamente é contra o erguimento do Estado Palestino, resolveu agir bombardeando irresponsável e indiscriminadamente alvos civis, pouco se importando com o saldo de mortes de inocentes, aí incluídos idosos, deficientes físicos, mulheres e crianças. 70% das mortes são de mulheres e crianças. A sanha genocida do governo israelense impôs-se inexoravelmente, no afã não apenas de eliminar as forças terroristas, mas também de fazer a limpeza étnica e, assim, eliminar qualquer veleidade de Estado Palestino.
Errou Lula na sua declaração ao citar Hitler e deixar entrever, conforme os críticos, que a campanha militar israelense em Gaza se compara ao Holocausto? Lula atacou o governo israelense ou a sociedade judaica como um todo?
O Holocausto, como o próprio nome sugere, é seguramente o mais grave e horrendo atentado à dignidade humana da História. Confinadas em campos de concentração, foram cruelmente humilhadas, torturadas e assassinadas pelo nazismo alemão, sob Hitler, no contexto da Segunda Guerra Mundial, mais de 6 milhões de pessoas, sobretudo judeus, mas também estão incluídos nessa conta, embora em menor número, homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais e opositores políticos em geral. Por tudo isso, jamais poderemos esquecer esse triste acontecimento e lutar com unhas e dentes para que não se repita. O Holocausto, por se caracterizar por assassinatos em massa, para limpeza étnica, e pelos métodos utilizados, sempre foi enquadrado como genocídio.
Como já assinalei anteriormente, a campanha militar em Gaza é indiscriminada e avassaladora, completamente despreocupada com os efeitos colaterais dos bombardeios sobre a população civil. Milhares de palestinos de Gaza tiveram suas moradias destruídas e foram deslocados e confinados em Rafah, na fronteira com o Egito, situação que em tudo se assemelha aos guetos, onde a fome campeia e há restrições de alimentos, água e remédios. Crianças, idosos, mulheres, deficientes físicos morrem sob o ataque dos bombardeios impiedosos e indiscriminados ou, feridos gravemente, são levados a hospitais precarizados e submetidos a cirurgias e amputações sem anestesia. Agentes de entidades humanitárias, funcionários da ONU, profissionais de saúde e jornalistas sofrem restrições à sua missão e há uma grande quantidade de mortos entre eles.
Gaza não pode ser comparado mecanicamente ao Holocausto, mas ambos, em diferentes graus, são caracterizados por genocídio. Nesse ponto, é bom lembrar que em 1948 Albert Einstein e Hannah Arendt, juntamente com outros intelectuais judeus como eles, já manifestaram sua repulsa à postura da ultradireita que detinha o poder em Israel, advertindo sobre a semelhança metodológica com o partido nazista alemão. Ou seja, embora Lula não tenha mencionado explicitamente o Holocausto, não errou na sua contundente manifestação citando Hitler e não foi o primeiro e único a comparar a sanha do governo israelense com a metodologia nazista.
Netanyahu e seu governo de ultradireita não aceitam o Estado Palestino. E se aproveitam da oportunidade oferecida pelo Hamas que, aliás, também não aceita o Estado de Israel, para trucidarem a população palestina de Gaza, enquanto pratica uma política colonialista e de opressão sobre a outra parcela da população palestina que vive na Cisjordânia.
O que impressiona é que nenhum dirigente de qualquer nação relevante do mundo se insurgiu ou criticou com veemência o pronunciamento do Presidente Lula, numa demonstração de que respeitam sua indignação e sua coragem ou se envergonham de serem lenientes com a situação em Gaza.
A fala do Presidente brasileiro calou fundo e pode ser um marco, a partir do qual é possível termos a esperança de que mudanças possam vir a facilitar a reforma da ONU e resgatar sua legitimidade para mediar conflitos no mundo todo. É descabido que cinco nações tenham poder de veto sobre resoluções aprovadas no plenário dessa entidade! Por outro lado, a reação desequilibrada do governo israelense à fala de Lula pode ser uma sinalização de que está desesperado pelo seu isolamento crescente e passe a considerar o cessar fogo como algo necessário. A conferir.
Meu dileto amigo professor Dorgival Henrique ponderou comigo sobre o que será dessa geração sobrevivente (se é que sobreviverá!) de crianças e jovens palestinos que protagonizam o horror em Gaza quando atingirem a idade adulta. Carregarão o ódio consigo e se tornarão terroristas ou serão capazes de se tornarem humanistas e promotores da paz? Nesse contexto, qual sentido faz para o governo de Israel promover o massacre em Gaza, a não ser o de eternizar o conflito?
As comunidades israelense e palestina estão desafiadas a tirar lições dessa aventura atroz que acomete ambas e a procurar construírem um caminho que proporcione a paz duradoura naquela sofrida região do planeta. E o caminho começa pelo reconhecimento cabal de dois estados soberanos: Israel e Palestina. Todos nós, de todos os países, temos que ajudar nisso.