O objetivo deste texto é contribuir na busca de alternativas de Ruptura/Revolução no meio da crise civilizatória do capitalismo. Não é um texto messiânico que aponta que a Revolução está na esquina, mas é um texto que toma lado e diz que não há processo de reforma possível que salve o capitalismo de sua contradição insolúvel, que é criar cada vez e mais, um sistema de mercado sem mercados, dada a contradição inerente ao próprio sistema.
Estas contradições insolúveis levaram à humanidade a becos sem saída. Nenhum sistema sobreviveu a seu colapso de projeto civilizatório, o que propomos neste texto é que o capitalismo já chegou ao colapso de seu processo civilizatório, e hoje como sistema é reprodutor da barbárie, aumentando cada vez e mais os déficits ecológicos, tecnológico, de consumo, colocando como alternativa para bilhões de seres humanos não incorporados ao sistema, como “alternativa” a fome, a miséria, a barbárie, a guerra civil, o terror de Estado, a repressão militar e policial.
Este artigo aborda a crise do capitalismo, mas também a crise teórica vivida pela esquerda com a queda do Socialismo Real na década de 1990, e a necessária retomada do método marxista de análise para criarmos a práxis (teoria + prática) necessária ao enfrentamento dos desafios do século XXI de forma conjunta e universal.
Só uma luta coordenada e universal da classe trabalhadora, dos pobres, dos miseráveis, dos deserdados do sistema pode abrir perspectiva de superação do modo de produção capitalista. De outro lado sair do anonimato, dos movimentos “anonimous” e que negam as formas articuladas e organizadas históricas dos trabalhadores, como partidos políticos e sindicatos. Todos os movimentos que negaram a organização terminaram sem projeto e sem perspectiva.
Temos que retomar, renovando-as à altura do século XXI as organizações trabalhadoras de massa para enfrentar o grande desafio do tempo histórico e repetir como profecia, o adágio de Lênin: Sem teoria revolucionária não há prática revolucionária, e sem prática revolucionária não há revolução.
Para isto, para retomar a fecundidade e a validade do marxismo, vamos tocar nos três eixos básicos da parte filosófica da teoria desenvolvida pelo jovem Marx, Fetiche, Alienação e Reificação, projetando a superação deste ciclo vicioso através da educação dos cinco sentidos.
Alienação:
Vamos reduzir a termo o nome Alienação/estranhamento, para que faça sentido ao leitor menos preparado no marxismo: “estar alheio, estranhamento a algo”. Para Marx, o processo de alienação ocorre a partir do momento em que o homem, dominando a natureza, através da força mecânica, muda o ritmo natural do trabalho. Há aqui uma contradição (antinomia nos textos de Marx), ao mesmo tempo em que ele fala de alienação, e tem de se estar alheio a algo, ele não define uma essência anterior humana. Assim, ao mesmo tempo em que ele diz que o homem está alienado de sua essência, ele não prevê uma essência humana a-priorística.
A essência do homem é um constructo, um vir-a-ser emancipatório, uma tarefa em construção, o que ele denominou, de a “educação dos cinco sentidos”.
“O homem é um tripé para Gramsci: ele é a relação, antes de tudo a sua relação consigo mesmo (existir antes de ser), sua relação com a natureza (dada através da indústria e do trabalho), sua relação com os outros homens (homo-faber/homo sapiens).
A alienação vai acontecer em cada um destes eixos, alienação com relação à natureza, alienação com relação aos outros homens, alienação com relação ao processo de trabalho e ao produto do trabalho. O homem é alienado no modo de produção capitalista, porque ele é um capital carente de si mesmo, que se desgasta e se perde no momento em que sua força de trabalho não está sendo realizada.
Com o advento do capitalismo, em que a criação do valor toma todo o tempo da sociedade, a alienação do homem no processo de trabalho se torna inerente ao próprio ser humano, que não se realiza através seu processo de trabalho, mas nos produtos criados por ele próprio. Assim a sua relação primordial com a natureza, como homo faber, seu processo de trabalho fica esvaziado, carente de sentido.
Marx relata como isto aconteceu no Manifesto do Partido Comunista: “A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais, e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento em dinheiro”. Afogou o frêmito sagrado da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, direta, despudorada, aberta.
A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.
A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro.” – Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista.
Fetiche
Fetiche da mercadoria é o fenômeno social e psicológico no qual as mercadorias aparentam ter uma vontade independente de seus produtores, é uma relação social entre pessoas mediatizadas por coisas. O resultado é a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas, por conta da alienação do homem no processo de trabalho.
As pessoas agem como se estivessem ao serviço das coisas, assim, as pessoas não se realizam através do processo de trabalho, mas do resultado do trabalho, ou seja, as mercadorias que podem comprar a partir do salário recebido (também produto exterior ao trabalho).
É através do valor pago ao trabalhador quantificado em coisas que serão compradas depois, no caso da produção de mercadorias, a troca de mercadorias é a única maneira na qual os diferentes produtores isolados de mercadorias se relacionam entre si.
É o que chamamos de reificação, o homem não se relaciona com seu trabalho de forma prazerosa e satisfatória, mas como algo alheio, estranho a ele, obtendo satisfação pelos produtos que consome posteriormente, pela relação de consumo e não de trabalho produtivo, como algo estranho ao seu fazer.
Então vem o nome Fetiche (de Feitiço), de realização exterior da mercadoria ao fazer próprio do homem (trabalho). O Fetiche é uma co-relação necessária da Alienação na forma-valor capitalista.
Conceito amplo de educação
Neste artigo, como a emancipação passa pela educação dos cinco sentidos, práxis revolucionária, trabalharemos um conceito amplo de educação. Como diz Emir Sadder, na introdução do livro A Educação para além do Capital, “A educação faz parte de nossa vida, do momento que nascemos até a hora da nossa morte. Na verdade não passa mais de 3 horas sem que o ser humano aprenda alguma coisa”. A educação pode ser vista de duas formas, como introjeção, inculcação de valores que mantém o status quo, função do qual a escola formal é a maior responsável pela manutenção das coisas como estão. A educação é censitária, já que, de acordo com a classe do indivíduo a ele lhe é destinado uma educação “adequada’ para que ele cumpra sua “função social’. Assim, a educação destinada às classes inferiores é feita para que se reproduza a mão de obra de pouca especialização necessária a que esta classe permaneça como está.
“A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade”, Karl Marx, Teses sobre Feuerbach.
Assim, a educação é o principal AIE (Aparelho Ideológico de Estado) no sentido de adequar às pessoas as condições pré-existentes, sem questionamentos ao estado vigente. Uma educação emancipadora só pode ser vista como uma educação que atravesse os muros escolares (embora esta visão emancipadora tenha que ser disputada também na escola) e que rompa as dicotomias entre homo sapiens x homo faber, fazer x planejar, trabalho manual x trabalho intelectual. Uma educação da práxis, questionadora de todos os fazeres da sala de aula e do mundo, dia-logizando o mundo, com uma visão de educação que vá além dos muros da escola.
Emancipação
Temos que retomar o conceito de Emancipação de Marx. Emancipação não pode ser algo de fora para dentro. Não é uma práxis messiânica, em que um líder, ou um pequeno grupo de eleitos “educa uma massa”. Emancipação ou é obra dos próprios trabalhadores ou simplesmente não é possível. Marx foi inimigo de todas as teorias conspiratórias ou de trabalho de minoria, o conceito de dentro para fora é inegociável em sua teoria.
Hoje temos partidos da “classe trabalhadora” sem classe trabalhadora em suas fileiras. Vivendo mais do que ilusão de classe, vivendo uma verdadeira esquizofrenia de classe, clamando por Revolução sem conseguir sequer organizar-se minimamente dentro da dispersa classe trabalhadora do século XXI. A teoria trabalhada assim se transforma de método em fé messiânica ateia, na qual algum deus ex machina operará o momento certo para a Revolução.
Sem as mediações políticas necessárias para fazer com que as grandes massas saíam do ostracismo político e virem militantes de uma nova Verdade Revolucionária, a Revolução, de possibilidade, passa a dogma sectário. Desta forma, a oposição absoluta entre Reforma x Revolução, se mostra uma falsa dicotomia, quando as reformas adotadas tornam grandes parcelas da classe trabalhadora ativas na luta do Aparelho Ideológico de Estado. Isto não significa subsumir a luta final, pela emancipação da forma valor e por enterrar o capitalismo, mas sim entender, que não há espaços vazios e políticas e a negativa em se lutar em cada mediação da luta do dia a dia, só ajuda a quem conservar e tornar as massas alheias aos processos mediatizados de dominação do Capital.
É fundamental resgatar o conceito de Emancipação, de momento de passagem da quantidade à qualidade, até para criticarmos ideias de dominação da grande massa por minorias iluminadas ou líderes carismáticos. Emancipação é processo coletivo, de auto-educação e tem como objetivo resgatar a todos de uma única vez, lutando contra todas as formas de opressão.
Classe em si/Classe para nós
Classe social não é um mero agrupamento de pessoas. Tem que ver com a posição das pessoas com relação ao processo produtivo, à organização dos meios de produção em determinada época histórica mas condiciona todo o pertencimento de homens e mulheres. Não é algo meramente acidental, faz parte do histórico de vida desde o nascimento, interage na biodiversidade de cada um. Somos seres biodiversos, em nossas crenças, línguas, fazeres, culinárias, cantares. Todavia, de todas as multiplicidades que nos formam, efetivamente o pertencimento a uma determinada classe social é, em última instância, o que determina e condiciona nosso papel social, do nascimento até a morte.
Com a derrota do chamado Socialismo Real, no fim do século XX (Derrota, seja dito claramente e não fracasso, já que a escolha aqui não é meramente de palavras, mas teórica, afinal o fato mais importante do século XX foi a vitória da Revolução Russa) há um desgarramento com relação à política e uma perda da ideia de centralidade do mundo do trabalho (que continua central, na realidade).
Enquanto a luta dos trabalhadores esteve em fase ascendente, boa parte do pertencer, do ser, passava por Sujeitos Políticos Coletivos como os sindicatos e os partidos políticos de esquerda. A derrota do Movimento Social consignada com a queda do Socialismo Real e o chamado “Fim da História” da década perdida neoliberal, década de 90, foi de tal intensidade, desarticulou de tal maneira o movimento social e de trabalhadores, que a ideologia neoliberal de fim das grandes narrativas, e de não-centralidade do mundo do trabalho, passou a determinar o debate ideológico da humanidade.
Com o “Fim do Fim da História”, a queda do Muro de Wall Street, o fracasso real do receituário neoliberal, começa a se criar as condições para a reação ideológica a ideia da não-centralidade da grande política.
Assim, se pode compreender melhor a dicotomia entre classe em si e a classe para nós. A humanidade continua a ser dividida entre duas grandes classes, Burguesia x Proletariado, todavia o simples pertencer a uma classe, “classe em si”, sem conhecimento das implicações deste pertencimento (tomada de consciência, classe para nós), faz parte do processo de alienação, das várias mediações sofisticadas impostas pela classe dominante para manter intacto sua hegemonia no século XXI: monopólio da grande mídia, indústria do entretenimento e da criação do “novo”, discurso de diluição das classes sociais, discurso de fim da história, discurso de não existência de alternativas, etc. O discurso que retoma o fio da meada revolucionária passa pela necessária distinção de classes sociais e pela luta de classes como motor do projeto revolucionário.
Práxis
Práxis e a indissolúvel união entre teoria e prática. “Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais.” – Marx, O Capital.
Não existe a prática cega. Não existe o trabalho “puramente espiritual”. As dicotomias, as hierarquias, entre fazer e pensar, executar e comandar, trabalho manual e trabalho intelectual são só dimensões, mediações de uma forma peculiar de trabalho, o trabalho assalariado.
Assim a práxis faz parte da educação emancipatória que visa superar a separação entre teoria e prática, execução e comando. Como diria Gramsci, a Dialética é a busca da superação entre a razão e emoção.
Socialismo x Totalitarismo
Uma das faces da luta ideológica contra o socialismo foi associar socialismo com “totalitarismo”, assim a emancipação entra num beco sem saída. Afinal, liberalismo vira sinônimo de “liberdade” e socialismo vira sinônimo de exceção.
Além do evidente erro teórico de se confundir liberalismo econômico com liberalismo político, quando há fartos exemplos políticos de políticas neoliberais e liberais econômicas garantidas por governos autoritários e ditatoriais, há uma evidente tentativa de falsificação teórica das ideias originárias socialistas, para invalidá-las antes de debater.
Hannah Arendt, uma das principais defensoras do liberalismo político (não do liberalismo econômico) fracassou ao tentar comparar o marxismo com o autoritarismo. Em uma obra propôs buscar em Marx as raízes de certos aspectos do totalitarismo do Leste Europeu, ela propunha que ao equiparar o homo faber ao homo sapiens, Marx teria dado a linha teórico para todos os desvios autoritários existentes no socialismo. O fato é que posteriormente Hannah Arendt nunca provou isto, até porque a raiz do socialismo de Marx é emancipacionista e o conceito de trabalho é praticamente grego, com aversão ao trabalho compulsório e divisão do trabalho penoso entre toda a sociedade, para que todos pudessem fluir igualmente dos prazeres do mundo, educação dos cinco sentidos.
Como nosso objetivo aqui não é analisar o socialismo realmente existente do Leste Europeu, vale frisar que a separação que ela propõe entre homo faber x homo sapiens, existe no jovem Marx entre work x labour, trabalho compulsório (assalariado) e trabalho em geral (capaz de ser gerador de prazer).
Assim, não há na raiz teórica do socialismo, seja revolucionário (Marx), nem no Social-Democrata (Bernstein, Keynes) nada que justifique o totalitarismo (Marx previa o fim do Estado) e efetivamente as políticas tanto socialistas quanto comunistas são inclusive compatíveis com o liberalismo político (não com o liberalismo econômico), defesa das liberdades civis, combate ao machismo, ao racismo, à homofobia, etc.
Estado como invólucro
O estado para Althusser, “rolha”, ele é o invólucro no qual se dá a luta da sociedade civil. É importante entender este o que significa esta “rolha estatal”. Significa que a luta mesmo não se dá somente no aparelho de Estado. Mesmo a leitura de Marx muitas vezes é feita de forma que localiza em lugar errado a luta. A luta é na sociedade civil, o Estado é o órgão de coerção e coação de classes sociais, que só se mostra em toda sua potência nos momentos de crise (Badiou), mas que funciona de forma mais eficaz através do “consenso”. Não entender “consenso” como uma espécie de paz social absoluta de um Estado sem conflitos, mas como um momento em que as lutas de classe dentro do Estado não chega a um nível de organização e de conflito que levam a uma crise, ou resolvida com um Golpe e uma Ditadura Militares, ou resolvida com uma Revolução.
Nos momentos de “consenso democrático”, a luta se dá dentro dos Aparelhos Ideológicos, assim denominados por Althusser, que deslocam a luta do Aparelho Central para cada superestrutura (pensamento) em que se dá o embate na sociedade civil. É nos AIEs (Althusser) que ocorre a luta cotidiana pela hegemonia (GRAMSCI)
A ideia “funcional” e ilusória de Estado entende o Estado Democrático como forma suprema de funcionamento social, ancorada em três eixos, a) Democracia representativa; b) Economia de mercado; c) liberalismo político.
O consenso ideológico que se disputa é que não há possibilidades além deste aparelho que seria “perfeito”, assim, qualquer crítica que vá para além de: (A) Democracia representativa X democracia substancial com igualdade econômica e não só de direitos, direta, referendos, plebiscitos, democracia direta; B) Economia de Mercado x Socialismo, estatização, coletivização dos meios de produção; C) Liberalismo político x Socialismo de tipo revolucionário ou social-democrata keynesiano;) estaria fadada de antemão ao fracasso, por análises rasteiras que travam o debate, dando como retrocessos, a priori as mudanças. O socialismo fica igualado ao totalitarismo, a igualdade econômica é tratada como ineficaz e a democracia direta como utopia.
Se o Estado em crise se defende das críticas com os ARE (Aparelhos Repressivos de Estado), com a ditadura de cunho fascista, nas épocas de “consenso”, tenta criar, através dos AIEs (Aparelhos Ideológicos de Estado), principalmente pelo monopólio da mídia através das elites dominantes, a ideia da total impossibilidade de uma mudança substancial.
Devir – Política como um campo aberto
Depois da queda do muro de Wall Street, da espetacular quebra da bolsa de Nova Iorque que transformou em pó meio trilhão de dólares, nem Fukuyama afirma mais que a história acabou. Há uma concreta virada no pensamento político, que ainda não reflete em uma hegemonia política, mas ninguém afirma mais, como afirmava na década perdida, a neoliberal década de 90, que “a história acabou”, nem mesmo Francis Fukuyama. Os Chicagos Boys, os grandes gurus da liberdade de mercado viraram pessoas nefastas, milhões de estadounidenses perderam suas casas, aposentadorias e empregos na grande crise dos subprimes, e mesmo nos EUA o mercado sofreu regulamentação, com a falência múltipla de gigantes como o Citybank e a AEG. Tudo que é sólido desmorona no ar, a afirmação profética de Marx no Manifesto Comunista, nunca foi tão atual.
A cabeça pensa onde estão nossos pés. Enquanto a crise era apenas e tão somente dos países vítimas do imperialismo capitalista, a mudança parecia uma miragem distante. Mas a crise do Capital chegou, e para ficar, nos países centrais do sistema. Países como Espanha e Itália estão com taxas de desemprego próximas aos 50% entre os jovens e com taxas assustadoras de suicídio, é o suicídio do futuro. Dentro da lógica de reprodução ampliada da mais-valia não há saída. O embate entre a busca da austeridade, cortando mais salários, empregos, aposentadorias, investimentos governamentais e o reflexo disto numa sociedade cada vez mais pobre e desesperada, faz com que as perspectivas de uma ruptura e o retorno à crítica radical ao capitalismo apareçam novamente no horizonte dos países centrais.
O tema da ruptura e da emancipação está na agenda do chamado primeiro mundo, o Capitalismo confessa explicitamente que não tem como garantir o futuro da maioria da população rica da Europa e dos EUA e propõe como solução uma cínica exclusão de “excedentes”, a vida das pessoas se torna frios números.
Assim, ainda que não traduzido em hegemonia política, vê-se o colapso da ideologia neoliberal como proposta civilizatória e o retorno das propostas de emancipação e socialistas. Quando as propostas de controle social ao Capital, primeiro passo da crítica radical ao processo sociometabólico capitalista volta a agenda, efetivamente fica claro que o propalado fim da história foi um canto de sereia passageiro, que a história é um campo em aberto e que será decidido por trabalhadores, empregados ou destituídos dos seus trabalhos, em todos os países, nos próximos anos. A crise é uma janela de oportunidades também para os trabalhadores se reorganizarem e levantarem as bandeiras antineoliberais, antidesregulamentação do trabalho, ambas anticapitalistas por essência.
Luta de Classes x Aparente consenso do Sistema
Dentro deste contexto de quebra de consenso, de fim de hegemonia do pensamento neoliberal, a boa e velha luta de classes volta ao Centro da Agenda. Necessário no campo ideológico reafirmar A CENTRALIDADE DO TRABALHO. Mudou a forma de ocupação, o setor terciário avançou com relação ao setor antes chamado de produtivo, o fabril, mas efetivamente, a proletarização de largas camadas da população avançou em lugar de retroceder.
A pulverização do trabalho no toyotismo pós fordista, com a automação e a robotização dificultou a organização dos trabalhadores, a sindicalização, a organização nos locais de trabalho. Mas o trabalho não deixou de ser central, os trabalhadores proletários, que necessitam vender seu trabalho para viver, não diminuíram de tamanho na dinâmica de classes, pelo contrário, a proletarização, se tomou formas mais ocultas e sofisticadas, com a desregulamentação do trabalho, se tornou hegemônica, com grandes contingentes da classe média indo parar em setores informais, terceirizados ou desregulamentados do trabalho.
Mesmo no Brasil, onde parte do proletariado que vivia em condições subproletárias saiu das chamadas camadas D e E da população para a camada C de renda, é um equívoco chamar este proletariado emergente de nova classe média. A Classe Média teórica, tradicional, são aquelas camadas de pequenos proletários, setores de Administração do Capitalismo de renda acima da média proletária, é bastante diferente daquilo que se convencionou chamar “nova classe média’. Na verdade, chamar estes setores subproletários, que chegam ao trabalho informa de carteira assinada e se proletarizam, de classe média é crasso erro teórico e tem objetivo não-acadêmico. Teoricamente colocar estes setores que tiveram uma pequena ascensão social na classe que no embate entre burguesia e proletariado tende a apoiar o status quo e só simpatiza com o proletariado em momentos de crise, em que está em vias de se proletarizar.
Na verdade, a maior parte deste proletariado (cujo emprego em boa parte se encontra no setor de serviços, mas sua remuneração e sua posição na dinâmica da produção não os coloca em situação de Administradores do Capital) é de difícil organização sindical e tem problemas centrais na sua identificação no mundo de trabalho, por conta mesmo do tipo de serviço que executam. Mas são para todos os fins de organização de seu trabalho e remuneração, proletários, ainda que haja a dicotomia entre a classe em si, a que pertencem, e a classe para nós, em que conscientemente se organizam.
Todavia, tanto as camadas médias empurradas para empregos proletários, quanto as camadas subproletárias que ascenderam de vida em condições destoantes da nova ordem mundial como no Brasil, não estão fora da dinâmica da luta de classes, pela manutenção de seus empregos, pela regulamentação progressista deles e pela consequente conquista de novos direitos.
Ao contrário das teorias que entoam muito precocemente o fim das classes sociais, criando espectros como “multidão” (Negri), a luta de classes apenas se transformou, ganhou novas formas desafiadoras, mas a sociedade continua dividida em duas grandes classes sociais, Burguesia x Proletariado, e a Luta de Classes voltou à centralidade com a grave crise econômica no centro do sistema capitalista.
A indústria dos Direitos Humanos e das ONGs de ajuda, uma falsa panaceia
Dentro desta luta pela centralidade da Luta de Classes e da emancipação dos trabalhadores, é fundamental criticar uma certa forma de ver os direitos humanos, uma verdadeira indústria dos direitos humanos, e uma determinada indústria da “ética”. Começando pelos direitos humanos. Muitas pessoas se assustam com a “crítica aos direitos humanos”, pensando, lugar-comum, ser a crítica homofóbica, racista, etnocêntrica de direita. Não é esta a crítica que fazemos, é a crítica cujas pistas estão em Alain Badiou. A “indústria dos Direitos Humanos’.
Os mesmos países brancos de olhos azuis, que vendem as minas e as metralhadoras, são os que faturam com ONGs de desarmamento e de retirada de minas. Ganham nas duas pontas do processo. Por mais que saibamos que há ONGs sérias, cujo trabalho objetiva o resgaste das vítimas do processo desumano do imperialismo, temos que criticar a indústria da ajuda, que faz desaparecer o responsável principal pelo processo de desrespeito aos direitos humanos, O IMPERIALISMO DOS PAÍSES CAPITALISTAS CENTRAIS.
Os mesmos países que enviam os médicos sem fronteiras são os países que ganham trilhões de dólares com patentes pirateadas de produtos da flora e fauna do terceiro mundo. Os mesmos países que fazem concertos de ajudas às vítimas das guerras e das fomes são os países que produzem a guerra e a fome no terceiro mundo. A indústria dos direitos humanos e das ONGs precisa de vítimas bestializadas cuja consciência pesada ocidental possa ajudar. Neste processo de “autoajuda” somem os processos criminais conduzidos pelos países capitalistas centrais, que reaparecem nos processos como condutores de ONGs civilizadas capazes de salvar os famintos habitantes do sul.
Esta falsa “alteridade” também se reproduz de país a pais do terceiro mundo, fazendo com que desapareça as críticas aos processos de exclusão e empobrecimento, que as soluções centrais de mudança sistêmica sejam esquecidas e milhões de ONGs capazes de produzir a “salvação das crianças” através da música, do atletismo, do futebol, se tornem uma falsa alternativa, já que todo este processo de salvação de uns poucos não passa de um constante processo de enxugar gelo.
Direitos humanos verdadeiros só existiram com Democracia Substantiva, com igualdade social real, emancipando as pessoas da pobreza. Ajudar pobres que se manterão na pobreza não resolve efetivamente a questão da dignidade humana.
É importante que tenhamos esta visão central, de grande narrativa em mente, em lugar das pequenas falsas soluções locais, que não resolvem definitivamente nada, se não quisermos eternizar a indústria da ajuda e da caridade.
Ética individual x Ética Coletiva
A outra parte que cabe criticar é a histeria pseudoética que grassou com a derrota do chamado socialismo real no fim do século XX. Com a perda da centralidade do trabalho e do referenciamento na luta sindical e nos partidos de esquerda, houve um vácuo político. Para a geração que viveu seus dilemas nas décadas de 60 e 70, havia uma centralidade da política e do trabalho; a perda desta centralidade levou a hegemonia da ideia pós-moderna de que não havia uma luta central, ou uma tarefa de emancipação conjunta, a luta passou a ser parcial em cada segmento e foi perdendo a nuance de luta política para um nuance “ético”. É o que denomino de embriaguez ética, já que em cada setor destas lutas parciais por inserção de segmentos dentro do capitalismo, seja o segmento de negros, índios, mulheres trabalhadoras, movimento socioambiental, perdeu-se a ideia de processo, de conjunto e de sistema.
Foi bastante interessante para o sistema que em lugar de enfrentar a luta organizada e centralizada por emancipação, passou a tratar cada questão pontualmente, com soluções parciais, que ciclicamente não solucionam nada.
Efetivamente não questionamos a importância de nenhum destes movimentos: Movimento negro, de reforma agrária, de mulheres, LGBTQI+, ecológico. Todavia, ao não estarem concatenados, a não terem uma proposta sistêmica de enfrentamento do problema central, de substituição do processo civilizatório excludente do capitalismo, pelo processo civilizatório includente do capitalismo, não conseguem transformar as vitórias parciais em vitórias estratégicas na luta pela emancipação, e veem muitas vezes suas conquistas serem ou assimiladas pelo sistema, ou mesmo perdidas por qualquer retrocesso que as forças reacionárias consigam impor, por conta da falta de uma estratégia global.
Não é possível uma ética global no capitalismo, a “embriaguez ética” que perpassa estes movimentos e até as empresas que criaram movimentos de “ética empresarial” (apenas para cuidar das suas imagens, a única ética destas empresas é o lucro), a única ética global possível no capitalismo é uma ética emancipatória, a se realizar no Devir, em outro processo emancipatório que rompa de uma vez para sempre todos os processos de exclusão global.
Reforma x Revolução Social
Uma outra falsa dicotomia a ser atacada é a dicotomia entre Reforma x Revolução Social. Porque dizemos que é uma falsa dicotomia? Porque, da mesma forma que parte do movimento social ficou doente de particularismo e com isto viu suas plataformas e projetos andarem de forma circular, parte da esquerda, filha também da Revolução de Outubro de 1917, criou uma espécie de messianismo vermelho.
Analisando primeiro o fracasso das alternativas do “outro mundo é possível”, que começa nas primeiras manifestações de rua de Seatlle, só reforça a necessidade de uma proposta de resposta global e sistêmica à crise civilizatória do Capital. Os protestos que começaram em Seatlle, rodaram o mundo, baseadas na ideia de concatenações de várias lutas do mundo, sem uma luta Central e resultou no Fórum Social Mundial, foram perdendo a força e a capilaridade, no momento em que as lutas políticas do Terceiro Mundo, começando pela América Latina, tomaram espaço Central na agenda.
Do momento dos primeiros enfrentamentos estatais de países de Terceiro Mundo com o Imperialismo, os movimentos que juntavam várias manifestações sem um eixo central e se negavam a dizer (como disse Chávez no Fórum Social Mundial em 2004, “que o outro mundo possível é o Mundo Socialista”) propositivamente que este outro mundo é um mundo sem capitalismo, foram substituídos na agenda dos povos pelas lutas por inserção de milhões e milhões de pessoas sem direitos que passaram a ter em Governos anti-imperialistas esperança de inserção dentro do trabalho formal e dos direitos a eles inerentes. O movimento que ainda existe nominalmente, foi implodido no Terceiro Mundo e está sendo implodido agora nos países centrais, quando a agenda necessariamente anticapitalista necessita de um eixo Central.
De outro lado, uma certa esquerda sectária, que na visão de uma dicotomia absoluta entre Reforma e Revolução, ficou órfã de qualquer estratégia e projeto e condena qualquer tentativa de projeto político, à espera de uma revolução para qual não contribui, como adventistas do sétimo a espera do arrebatamento que será feito por Lênin, para os crentes vermelhos ao céu socialista.
A dicotomia entre Reforma x Revolução, na discussão da Segunda Internacional, que dividiu socialistas entre chauvinistas e internacionalistas, partidários da Guerra Imperialista x Partidários da Revolução, faz todo o sentido no século XX, no limiar da Primeira Guerra Mundial. No momento de reconstituição das forças progressistas, em que se juntam forças e se busca uma estratégia global para enfrentar a hegemonia neoliberal, é um debate escolástico, haja vista, que a possibilidade de reformas que retomem a centralidade do trabalho, traz de volta para a arena histórica milhões de trabalhadores que hoje apenas sobrevivem, não vivem.
Não é de forma nenhuma negar a necessidade de uma solução global definitiva, é entender, que ao contrário do início do século XX, quando estávamos na antessala da Revolução Russa (vitoriosa) e da Revolução Alemã (derrotada e que levou ao isolamento da Revolução Russa, explicando na prática muito dos problemas posteriores), neste momento do século XXI estamos reorganizando as forças dos trabalhadores e a tarefa global de organizar os trabalhadores para resistir ao ataque de retirada de direitos é a única capaz de unir trabalhadores de todos os matizes. Assim, a luta antineoliberal é o primeiro passo de qualquer futura luta anticapitalista.
Ética do Valor, Sociedade do Mercado sem Mercados.
Na sociedade do valor, tudo é mercadoria, os valores são tangíveis em número. Numa sociedade que alardeia a embriaguez ética, tudo se subsume a números. A literatura, a música, as artes plásticas. A “qualidade” dos artistas é medida pela quantidade de produtos que eles vendem e toda a crítica fica restrita aos conceitos de “velho” e “novo”, os únicos conceitos compatíveis com a indústria de consumo. Na sociedade da forma Valor, inclusive o que é “velho” e o que é “novo” são produzidos pela própria indústria cultural, da novidade; a arte ou é entretenimento, pão e circo, seja no cinema, música ou mesmo nos livros (Best Sellers), ou formas de entesouramento e gastos de luxo, supérfluos, no caso das artes plásticas. Deve se dissecar e retirar das artes todo o apelo humano e crítico. As artes devem ser assépticas e ou divertidas, para consumo e esquecimento, para que o mundo seja difuso, caótico e sem sentido.
Assim, todos os conceitos críticos devem ser tratados como sem valia: local x universal; forma x conteúdo; identidade cultural x influências externas; talento x habilidade técnica; NENHUMA DISCUSSÃO CRÍTICA É BEM-VINDA. A crítica se torna um serviço da indústria cultura e serve como merchandising para vender e revender os produtos criados a todo o momento.
A sociedade do valor coloca no mercado homens e outros objetos. Assim, a arte tem de se tornar produto fungível, e não ato humano transformador e transcendente, os artistas valem pelo que vendem, não pelo que são. A filosofia não pode ter objeto global ou objeto humano, deve girar em falso especializada epistemologias internas entendíveis somente aos iniciados. A Sociedade de Mercado sem Mercados, que gira em falso, porque sem emprego não gera salário, e sem salário não gera consumo, sem consumo humano o mercado é um mercado sem mercados; não pode, DE MANEIRA NENHUMA, dar elementos críticos para seu entendimento e superação, EMANCIPAÇÃO. Toda sua ética, filosofia, arte, tem que ser pulverizada, caótica, sem sentido. A medida do valor único é o “sucesso”, fato fungível e superável que sempre se mede também em bens do mercado. A sociedade da Forma Valor, a Sociedade do Mercado tem de agir nas superestruturas de pensamento com os burrinhos das carroças que correm atrás das cenouras amarradas, e que por mais que se movam, a cenoura sempre está um passo á frente deles. Mas, ao contrário da Utopia que serve para fazer o caminhante caminhar mais para frente com um propósito, na cenoura da sociedade da Forma Valor, nosso burrinho gira atrás do próprio rabo, tangido pela mão invisível do Capital.
Assim, a ética tem de ser uma embriaguez e uma ilusão; e se subsumir a pequenos detalhes de comportamento, pode e deves fazer apolíticos e individuais; a filosofia é escrita sem verdade; a arte sem humanidade e sentido; a crítica a todas as superestruturas da Forma Valor capitalista. Alguns teóricos, aprioristicamente atados, se submetem à falência da Razão e ajudam a forma este consenso, abrindo mão de quaisquer explicação racional do mundo, de qualquer grande narrativa, de qualquer cosmogonia. Sem a arma da crítica visceral a todas as formas que impõe o consenso neoliberal capitalista, não é possível se montar as estruturas de resistências e de construção da contracultura.
Internalização, conformidade, consenso
Na batalha por corações e mentes, na luta por uma sociedade, estamos no meio do caminho, quando entendemos as diversas formas de internalização, introjeção, que criam a conformidade com a ordem vigente. Mostramos como na ideia da embriaguez de uma ética individual de um pseudo bom mocismo, se esconde a falta de um projeto coletivo; e como todas as superestruturas de pensamento, filosofia, arte, ciências, tem que seguir numa linha irracional, partida, especializada e sem nenhuma crítica sistêmica. Arte do entretenimento e fungível; artes plásticas como entesouramento; filosofia como pura epistemologia de si mesma; ciência como especialidades estanques; embriaguez ética como lugares-comuns, juízos de conformidade sem nenhuma crítica radical ao processo civilizatório; tudo forma um todo caótico e sem sentido, que reforça a ideia de uma mão invisível, e de que a falta de planejamento e de lógica de um sistema que desregulado se torna uma tragédia para bilhões, e no fim das constas a única lógica possível.
Nos aparelhos ideológicos de Estado, todos hegemonizados pela alta burguesia, principalmente através do monopólio midiático, há a necessidade de se transformar o caos em algo normal, aceitável e mesmo desejável. Tudo deve gerar aceitação, conformidade, consenso. A única linha de resistência possível, a das ações isoladas, do estilo ONGs e trabalho voluntário, não apresentam-se como dissenso, mas sim como formas de se apurar e corrigir os “desvios” e manter o “consenso’. Todos que se posicionem fora destas lógicas devem ser ridicularizados como dinossauros da história e gente que se recusa a aceitar o que foi dado por algum deus ex machina para todo o sempre. Como pensamos onde pisamos, estes consensos começam a ter fissuras. A grande crise civilizatória do capitalismo mostra que efetivamente estes consensos são mais frágeis do que parecem à primeira vista.
Mesmo a ideia do sucesso como acúmulo de bens, cria ídolos tão fúteis como tangíveis, e a resistência cultural, científica, estética, filosófica, a resistência na economia política; no meio da maior crise do capitalismo desde o crash de 1929, abre espaço para as inovações teóricas que são as armas que os povos, homens e mulheres poderão usar como grande narrativa para criar o dissenso, a grande cultura, o movimento anticonformismo.
Em cada espaço das superestruturas e dos aparelhos ideológicos se pode, com criatividade, criar-se a cultura do dissenso, do inconformismo e da emancipação; no momento de crise do processo civilizatório, a inventividade de poetas, músicos, filósofos, cientistas sociais em geral, pode e deve estar a serviço de criar, cotidianamente as armas múltiplas para a práxis do dissenso, da Emancipação, do vir-a-ser, do Devir.
Educação dos Cinco Sentidos
A educação dos cinco sentidos é a ética de homem novo, capaz de fazer frente a tarefa histórica atual de termos uma ideologia capaz de frear a submersão do homem a uma Alienação cega e brutal que se dá no processo totalitário da fábrica e do Estado, da ideologia consumista mais voraz, que torna os homens escravos de seus próprios produtos, na nossa sociedade na qual tudo está eclipsado na forma-valor.
A ética saindo da pura abstração, do puro criticar o mundo, e se tornando mais que uma arma crítica, mas a crítica das armas apontadas contra a sociedade vigente. Como filósofos temos que sair da teoria pura e pensar numa política de emancipação, tendo como missão revolucionar o mundo, para além da simples crítica teórica, transformando a teoria em ação (Revolução). Isto vai de encontro ao niilismo filosófico pós-moderno negador de qualquer ontologia e da subjetividade, e também vai contra o relativismo moral de nosso tempo. Também vai de encontro aos teóricos marxinianos que negam humanismo ou ontologia em Marx, que reduzem o marxismo a uma simples economicismo utilitarista.
Os textos do jovem Marx como os Manuscritos Econômicos Filosóficos e a Ideologia Alemã, mostram um Marx herdeiro do humanismo racionalista, prenhe de racionalidade hegeliana, com uma tarefa de Prometeu de levar o fogo aos homens. Segundo Marx, os homens viveram até agora a pré-história da humanidade, a libertação da sociedade da necessidade cega, levará o homem a uma nova era, onde as realizações por vir eclipsarão a sociedade da necessidade, como toda a história anterior tendo sido apenas a pré-história da humanidade, como na Contribuição à crítica da economia política:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência .”
Como já referenciado nos parágrafos anteriores, na trajetória dos estudos de Marx, ele vai hipertrofiar a base econômica como responsável em última instância pelo pensamento social. Assim, o pensamento vai ser para ele reflexo, ideologia, das intrincadas relações sociais materiais concretas da sociedade capitalista, superestrutura da infraestrutura concreta material, sendo que o pensamento dominante de uma sociedade cindida em classes será o pensamento da classe dominante; tal superação se dá no viés ainda ortodoxo da Revolução Socialista emancipatória da estrutura material, que supera o atual processo sociometabólico.
Já em Marx, na mesma Contribuição à Crítica à Economia Política, em seu prefácio:
Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que faz de si mesmo, tampouco se pode julgar tal época de transformação pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade.
Esta contradição entre as forças produtivas (aí estruturadas inclusive na forma como os homens se organizam e pensam) e os meios de produção, em que a superestrutura da classe em si se transforma na classe em si, levam a uma nova forma de produção e de construção da sociedade que trazem em gérmen em uma nova ética, que se traduz na educação dos cinco sentidos para a criação do novo homem. Ética que só pode ser do Devir, porque na estrutura de Fetiche e estranhamento não há espaço para a construção deste mundo novo.
Com as Teses sobre Feuerbach se produz uma verdadeira inversão da visão filosófica marxista. O aspecto ativo é privilegiado em relação à abstração e voltado contra Feuerbach como o limite que não chegou a transpor, por suas próprias deficiências. Por um paradoxo singular, é do próprio seio da especulação que o materialismo é interpelado e criticado em sua “falha” (por parte de seu defensor mais recente, o próprio Marx, que firma assim uma espécie de autocrítica, reconhecendo a superioridade, naquele momento, da filosofia hegeliana para compreender a parte ativa, como realização do sujeito na história, como assumido nas Teses sobre Feuerbach):
“A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjectiva mente. Por isso aconteceu que o lado acrivo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a catividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria catividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. Não compreende, por isso, o significado da atividade “revolucionária”, de crítica prática..”
A educação dos cinco sentidos, como já citado anteriormente, é a parte menos desenvolvida da teoria marxista em comparação com o lado econômico e sociológico, devido as necessidades já explicitadas dos estudos práticos e militantes de Marx. Por isto, voltamos a ressaltar, que a primeira premissa que temos que provar é de que é possível uma ética em Marx, a contrário senso do que dizem os críticos conservadores de Marx, que veem no marxismo apenas uma filosofia utilitarista prática criada para galgar o poder, ou mesmos as reduções stalinistas que querem reduzir o marxismo a um manual prático de tomada do aparelho de Estado. De que Marx não foi um amoral, um niilista, ou um relativista moral, no sentido de não depreender das ações humanas um fim ético, justo. Marx valorava a questão da ética e da moral, na questão do bem para a maior quantidade de pessoas, já que o proletariado, classe em si, com potencial germinal para se transformar em classe para si, é a grande maioria despossuída pela sociedade
O conceito de bem em Marx está completamente subordinado ao seu humanismo, já que para Marx, sucessor dos iluministas, o homem é o centro de todas as coisas. Não é um conceito de bem maniqueísta, claro/escuro, bem/mal, certo ou errado, mas sim um conceito que em certo ponto se aproxima do utilitarismo (sem se identificar ou se reduzir a ele, como sugerimos acima), de maior bem para o maior número de pessoas, já que no proletariado está a maior parte da humanidade, para asseverar o que afirmamos, segue o conceito de homem e humanidade em Marx, inserido na Ideologia Alemã.
“A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos primeiro fato a constatar é, portanto, a organização física destes indivíduos e a relação que por isso existe com o resto da natureza. Não podemos entrar aqui, naturalmente, nem na constituição física dos próprios homens, nem nas condições naturais que os homens encontraram — as condições geológicas, oridrográficas, climáticas e outras. Toda a historiografia tem de partir destas bases naturais e da sua modificação ao longo da história pela ação dos homens.
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião — por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material.
O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, em primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a reproduzir.
Este modo da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso sim, de uma forma determinada da atividade destes indivíduos, de uma forma determinada de exprimirem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.”
Assim Marx relacionava a avaliação de um ato como justo ou injusto de acordo com esta possibilidade de extensão do maior bem a um maior número de pessoas (o que o identificaria até certo ponto com o utilitarismo, mas como dissemos acima, não propriamente, já que não se reduzia à utilidade a justiça de uma ação), por isto a eleição do proletariado como sujeito histórico e herdeiro das transformações sociais.
A educação dos sentidos assim passa por um projeto total de emancipação, novo projeto sociometabólico e novo processo civilizatório. Peça pela Emancipação de todas as formas fetichizadas do Capital e a criação de formas de relações humanas, econômicas, que dispensem fetichizado e hierarquizado do Capital. Por isto a denominação “educação dos cinco sentidos”, como ideia de reaprendizado humano. Na aparente antinomia, recuperação da essência humana perdida no capitalismo (alienação), numa teoria, a marxiniana, que não tem nenhuma essência a-priorística. Assim, a Educação dos Cinco Sentidos é o campo aberto para reconstruirmos toda a história humana. Para isto não podemos abrir mão do método global e sistêmico de análise da sociedade, numa relação de conflitividade analítica crítica com as outras superestruturas que avançaram na análise da sociedade contemporânea, como a psicanálise (por exemplo).
Trabalho criativo, emancipação, ócio sem culpa.
Para finalizar este pequeno artigo, de crivos teóricos sobre a possibilidade e a necessidade de utilização de uma ferramenta teórica global, temos que entender duas coisas:
1) Esta ferramenta global não contém em si toda a verdade, e deve dialogar conflitivamente com as outras superestruturas de pensamento que analisam a sociedade moderna. O marxismo não é uma religião, como método e ferramenta ela não convive bem com juízos apodícticos que pregam, por exemplo, não estudar Freud ou Nietzsche porque estes são burgueses. O método marxista de investigação da verdade deve e pode conviver conflitivamente com as outras estruturas que analisam a verdade e a história sem juízos falaciosos de autoridade.
2) Não dizer que o marxismo não contém toda a verdade, não significa abrir mão, nem de uma visão global do mundo, e nem de um crítica global da sociedade; também não significa uma heterodoxia na qual se abra mão do método e se valide juízos sem comprovação na realidade. Significa que o marxismo, como método de análise deve se inteirar de todas as críticas feitas ao processo sociometabólico do Capital, e a si mesmo como teoria, como forma inclusive de se aprimorar como superestrutura do pensamento e não pode e nem deve conter toda a verdade. É um método de análise da luta de classes, e não pode abarcar todo o processo de conhecimento humano, devendo ter uma convivência conflituosa e crítica com teorias que façam a crítica da arte, da ciência, da psique. Se não cairemos naquela forma de obreirismo totalitarista que classificava uma Ciência e sua validade de acordo com se “enquadrar” ou não na “teoria marxista”. O marxismo não é uma religião validadora do conhecimento humano, mas um método de análise global do conflito de classes que permeia dá a dinâmica de toda a sociedade.
Não pode e nem deve responder a todas as dúvidas, não deve ser a totalidade científica, nem ética, nem filosófica. O que não significa que esta visão de totalidade não exista na convivência conflituosa das várias estruturas de pensamento (superestruturas) que explicam a cosmogonia humana.
Para finalizar o artigo, que foi iniciado como anotação de aula, o objetivo final de uma teoria emancipatória não pode ser as revistas acadêmicas. O marxismo não é apenas e tão somente um humanismo envergonhado, feito para declamações em salões. A ética do Devir, Educação dos Cinco Sentidos que propomos, ética do Homem Novo é uma ética emancipatória. Temos uma sociedade doente de miséria na abundância e doente de sobretrabalho. Temos uma sociedade que produz em demasia produtos que não consome, pelo Fetiche e febre consumista de nos reificarmos nos produtos que fabricamos.
Só homens e mulheres emancipados do Fetiche do consumismo, num outro processo civilizatório, poderão realizar um novo processo sociometabólico, no qual o trabalho compulsório, hoje trabalho assalariado, não seja o eixo de nossas vidas. Que o ócio não seja uma culpa e um não-fazer, mas tempo criativo humano. Que a maior parte da quota do que hoje chamamos trabalho seja a realização criativa de todos. Na sociedade que se erguerá sobre as ruínas da sociedade do Valor, a ideia marxista, do jovem Marx filósofo, é de que o homem possa pescar de manhã, ser operário à tarde, e músico à noite. Que não fique subsumido a uma jornada de trabalho castrante de oito diárias, mas que dentro de uma jornada humanista básica de trabalho social produtivo, de quatro, cinco horas, possa utilizar todo seu potencial e todo seu tempo numa série de trabalhos criativos e realizadores da sua humanidade.
Proletários de todos os países, uni-vos, nada tem a perder, se não suas cadeias, tem um mundo a ganhar.